Todo Desvio conduz a um caminho: o processo criativo de uma obra de vídeo-arte

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A arte proporciona ao homem um contato com a sua natureza, a qual o mundo corrido, frenético, tresloucado, acaba por adormecer ou deixar subentendido. No paradoxo da vida, o mundo foi forçado a parar, a estacionar sua motocicleta veloz na própria casa, sob a ameaça daquilo que ele muitas vezes se acha superior, a natureza, o universo biológico ao seu redor. Com o mundo parado, as pessoas presas em suas casas, a arte reaparece como componente essencial à sobrevivência da psique humana, de seu desenvolvimento e reconforto perante a realidade muitas vezes dura. Realidade que se reinventa, de acordo com o tempo e as experiências pessoais de cada ser.

O presente trabalho reflete, sem sombra de dúvida, a busca do próprio autor por uma reexperiência da realidade, uma ressignificação de si mesmo, e traz consigo uma nova e experimental foma de contato e produção artística. Na minha bagagem de conexão e produção de arte, tenho na literatura meu principal e mais longevo meio de expressão. A literatura sempre foi minha companheira, na leitura e na escrita, e ela trouxe-me ao universo cinematográfico através da arquitetura e construção de guiões – um texto de natureza altamente técnica, mas que guarda por trás uma imprescindível sensibilidade artística.

o caminho do artista

Se as Letras foram, e são, as minhas principais companheiras, a dança o também foi e é. Ainda no Brasil, sempre tive um verdadeiro fascínio por essa manifestação de arte, de modo que o período de maior imersão nessa linguagem foi entre os anos de 2015 e 2016, quando participei de grupos de Frevo, dança nascida na cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco, Nordeste Brasileiro.

Estive envolvido em encontros no Paço do Frevo, espécie de museu dedicado a essa manifestação, consagrada pela Unesco como Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade, além do grupo de rua Guerreiros do Passo. Foi nessa época em que passei a utilizar o corpo como instrumento de comunicação artística dotado de técnica, consciência corporal e imbuído de significativa capacidade de expressão estética e cultural.

Minha entrada no mundo da dança com maior rigor técnico foi o pontapé para o desabrochar de meu interesse no mundo das artes cênicas, também com uma preocupação de conexão com as artes com maior maturidade, estudo e profissionalização. Do Recife, migrei para Dublin, Irlanda, local onde participei de workshops de atuação, com pequenas montagens públicas, e finalizando minha trajetória no país com uma formação mais sólida, na Gaiety School of Acting, e seu curso de Teatro semi-intensivo com duração de um ano.

Com a vinda para Portugal, mantive minha determinação de continuar no estudo e na prática das artes cênicas. A continuidade nesse sentido foi possibilitada através do grupo de teatro da Universidade da Beira Interior, o TeatrUBI. No entanto, para minha grata surpresa, o referido grupo baseia a criação de seus ensaios, encontros e espetáculos com base numa metodologia cênica da qual eu não possuía total conhecimento prévio: o Teatro Pós-Dramático.

as referências

O termo Teatro Pós-Dramático tem como referencial o crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann em sua obra Postdramatisches Theater, publicada originalmente em 1999. Desde o primeiro dia dos encontros, a minha curiosidade em torno dessa nomenclatura esteve bastante atiçada, mas foi na prática que minhas interrogações foram mais esclarecidas, ou, felizmente, não.

Em poucas palavras, a técnica ou corrente pós-dramática tem como base a abstração incessante de símbolos, enredos, conflitos, caracterizações, e quaisquer outros artifícios, subterfúgios, elementos e mimeses típicas do teatro convencional. A busca pelo improvável e pela desconstrução da mimese aristoteliana são espécies de regras a serem seguidas. Fazer movimentos que desafiem a mimese é muito mais complexo, constrangedor e desconcertante do que parece, e essa foi uma das principais premissas dos encontros junto ao TeatrUBI.

A minha hipótese é que as mudanças descritas por Hans-Thies Lehmann realizam, no âmbito da criação teatral, uma forma de passagem à abstração comparável à que atravessou as artes plásticas nos anos 1900-1930, com o abandono da figuração” (Plassard, Didier, 2012)

vários desvios dentro de um Desvio,

O ponto de partida de Desvio, vem da busca do artista “amador” por uma arte que lhe seja autêntica, que traga sua identidade pessoal, e, ao mesmo tempo, rica criativamente, multifacetada. O vídeo é resultado de sucessivos desvios, formas de rever, de refazer, de repensar: a cada performance, um ângulo diferente, uma música diferente, uma proposta temática subjetiva diferente.

Da mesma maneira, a edição trouxe sucessivos desvios e escolhas autorais que buscavam expressar essa tentativa de expansão do potencial criativo de um vídeo, apesar das limitações técnicas do autor. Cada clipe é flagrantemente diverso do outro e é despedaçado, encaixado e reencaixado em outro contexto, com outro filtro, outra referência sonora.

A cada Desvio, uma vírgula indica que virá outro, e mais outro e mais outro. A vida tem tantos desvios e os acidentes a enriquecem tal qual cada desvio gerado no processo criativo do artista em sua tentativa de correr riscos em cada intervenção.

A harmonia da composição de cada performance original é desviada, distorcida, maculada em toda sua natureza e amalgamada em um fluxo descontinuado, fragmentado de narração – uma proposta que abraçou também a identidade visual do vídeo, na sua intro e em seus créditos finais.

O limite de um quadrado cênico improvisado opera para o limite de uma composição visual também limitada, mas é nesta fronteira em que se opera a magia do pós-dramático e sua capacidade de destruir convenções para paradoxalmente provocar uma nova convenção. É um caminho trilhado no descaminho, a aventura resultante de diversas desventuras, o repúdio à harmonia renascentista e abertura ao caos dadaísta, onde o inconsciente surrealista emerge de modo ainda mais picado, rasgado, confuso.

A não-figuração é uma das minhas abordagens artísticas favoritas. A busca pela desarmonia, o abstrato, o desconexo, de caráter francamente dadaísta, surrealista, vem como uma marca nas minhas produções audiovisuais, a exemplo de Um Filme Sobre Janelas, produção selecionada para o Super 9 Mobile Festival, edição 2020. A composição suprematista do artista russo Kazimir Malevich (1879-1935) foi um dos meus principais referenciais na construção do filme, especialmente seu famoso e enigmático quadro-negro.

Em Desvio, em vez da poesia falada e multinarrada presente em Um Filme…, busquei a poesia não verbalizada, gestual, cujos conflitos são escritos sob o fluxo dos movimentos. Neste caso, o performer americano Vito Acconci surge como embasamento, tendo em vista sua proposta de utilizar a si mesmo nas suas instalações, como o fez em Seedbed (1972), na qual, durante o curso de três semanas, ele se masturbou oito horas por dia enquanto murmurava frases com alto teor sexual. A questão de exposição sexual eu abordo nos próximos tópicos.

Confesso que a busca por uma temática nuclear anterior a cada coreografia foi pensada, mas praticamente dispensada. O que pude notar é que a racionalização prévia de cada número acabava por macular a experiência de fruição artística e energia criativa da performance. Esta foi mais uma das referências conseguidas em minhas experimentações durante os ensaios do TeatrUBI.

Em meio a cada performance, que pressupunha a escolha por um ponto de partida temático específico, éramos induzidos a executar um número que, apesar da liberdade de expressão concedida, tínhamos que evitar ao máximo a mimese, a imitação, a mímica. De que maneira um gato pode ser representado sem que para isto fosse necessário fazer uma mímica? Qual a maneira mais infiel de recriar os movimentos do gato? Quando alcançávamos esse grau de criatividade e de rompimento de padrões, contanto que tivéssemos algo a dizer e não apenas perdidos em movimentos sem sentido, era o nosso auge maior.

E no compasso da coreografia, nos perdíamos, lidávamos o tempo todo com o que fazer, como agir, como proceder agora, e buscávamos o movimento, ao mesmo tempo em que éramos desafiados a desconstruí-lo. Para tal, fazíamos uso de nossas referências pessoais e assim surgia um espetáculo, com base no que cada ator poderia oferecer espontaneamente ou não.

No meu caso, foi o contrário, meus movimentos, sempre dotados de uma explosão energética avassaladora, foram praticamente suprimidos para a criação e o desenvolvimento de uma personagem francamente oposta a mim. Com o passar dos ensaios, esse desconforto foi trabalhado e representou uma nova possibilidade de atuação e expressão corporal.

Em Desvio, tentei utilizar a não racionalidade propositiva, ou seja, o não pensar no que se está fazendo, mas querendo propor algo que pudesse ser construído. Para facilitar o processo, utilizei músicas de fundo psicodélico e outras de repertório clássico e moderno-clássico, como a composição Toledo, do artista brasileiro Cociolli. Nem um nem outro tipo de banda sonora foi utilizado no processo de montagem. Todas as músicas foram suprimidas e utilizadas unicamente para a gravação e a libertação do envolvimento emocional do ator no seu decorrer.

Esta limitação, que foi gerada por questões de salvaguarda de direitos autorais junto às músicas, acabou por gerar uma linguagem sincretizada e embevecida por diferentes origens musicais e nuances, como se pode notar no vídeo. Uma experiência bastante enriquecedora.

a gravação e a montagem

O tempo integral da rodagem, com a soma de todos os videoclipes e, cada qual parcelado e composto por uma performance individual e banda sonora singular (no momento da gravação e não da montagem), teve a média de 1 hora de duração. Cada mini-história / performance dispõe de um ângulo próprio, que variou entre picado, normal e plano americano. O corte dos miniclipes foi parecido com a edição de um texto e, de acordo com a minutagem final do vídeo, uma quantidade bastante significativa de conteúdo foi descartada – processo que exigiu desapego e uma dose certa de objetividade.

O descarte não levou em conta apenas a minutagem final da obra, mas um senso de finalização, um filtro mínimo. De modo que, cada corte possibilitou deixar a essência de cada historieta, convergindo num acabamento caleidoscópico que condiz com a sua natureza psicodélica.

Ainda no que se refere à montagem, se no texto temos um caminho, um percurso pela engenharia complexa, altamente técnica e, a depender da sua natureza, normativa ou anormativa (o texto poético), essa estrutura é mais fluida na performance cênica pós-dramática. Conquanto os movimentos simbolizem, sinalizem, acenem para uma mensagem, um eixo discursivo, o aspecto mais concreto, sólido desses movimentos é posto em xeque.

Se o microinstante, a célula do texto, é a palavra, na dança/performance, sua unidade básica é o movimento, sendo este um pedaço de um todo; a expressão facial, o uso das mãos, dos braços, pernas, bem como seu não uso, seu silêncio, sua estaticidade, também falam, dizem algo, discursam. Deste modo, a quebra entre um e outro pode provocar uma distorção, um desastre.

Ao vivo, no palco, sem o corte da lâmina impiedosa do editor de vídeo, toda essa narrativa artística possui um senso, uma lógica, uma orquestração que é percebida pelo público de
modo muito mais intenso, com a energia do ator em plena catarse. O mesmo não acontece
no arquivo audiovisual, o que pode prescindir a busca por artifícios técnicos que ampliem a
experiência sensorial por parte do espectador.

o som
A banda sonora de fundo é livre de direitos e traz o cerne experimental da proposta da obra.
Um fato curioso quando da sua inclusão ao conjunto de clipes que compõem Desvio, foi uma
possível sincronicidade, harmoniosidade entre eles e os sons. Essa combinação foi totalmente
não planejada, tendo em vista que o próprio autor não possui profunda experiência em
termos de montagem.

Essa conexão inusitada me fez lembrar os encontros do TeatrUBI, nos quais os números
apresentados pelos atores, executados, a princípio, no mais puro silêncio, encontravam forma
e coerência em uma trilha sonora, com sincronicidade, ainda que esta não fosse fruto de um
planejamento.

A escolha das músicas era uma etapa posterior à escolha da coreografia, de maneira que o
número do artista já estivesse pronto antes de sua concatenação com os sons. E quando os
dois se encontravam, movimentos e sonorização, a mágica acontecia, num imprevisível e improvável diálogo entre os dois: a loucura dos gestos em consonância com o embalo
melódico musical.

um foco, apesar de tudo.
Para resolver qualquer “viagem temática”, ou simples devaneio que, em vez de comunicar
uma ideia, poderia induzir que aquilo que está sendo montado fosse de caráter puramente
aleatório, irresponsável ou sem qualquer força ou propósito artístico, Desvio, assume a
roupagem anárquica, artesanal, disruptiva. A obra leva em conta relevantes limitações em sua
composição, como o grau de experiência do autor junto ao universo de videoarte e a própria
situação global de pandemia. No entanto, tais limitações impreterivelmente atuaram no
sentido de impulsionar o fogo criativo do artista e dão a tônica de sua obra.

A impossibilidade de sair de casa em busca de ambientes visualmente mais instigantes ou
desafiadores, somada à sua pouca experiência com ferramentas de edição de vídeo mais
sofisticadas (o autor tentou utilizar o DaVinci, mas a reduzida capacidade de seu laptop
impossibilitou o manuseio do programa), foram parte importante para a manufatura da obra
e estão inerentes à sua composição. De modo que esses fatores até mesmo contribuem para
seu apelo naturalista e atécnico.

figurino, cenário e direção de arte
Foi no quarto do artista, no alojamento estudantil da UBI, em pleno furacão pandêmico, que
o trabalho ganhou vida. A natural limitação de espaço foi parcialmente suprimida com o
rearranjo dos poucos bens que ali se encontra. Apesar de buscar mais espaço, eu quis
incrementar um pouco a dificuldade com a presença de uma cadeira, um elemento com o
qual eu pude interagir durante algumas performances, como se a querer animar esse objeto
através da execução dos movimentos.

A preocupação em gerar um conteúdo artístico com apelo visual repercutiu na escolha da
roupa e suas variações: camisola e cueca pretas, que ora mostravam e ora não mostravam o
corpo do artista. A escolha pelo nu foi pensada como uma libertação de padrões morais e
acanhamentos, os quais, devo reconhecer, não foram integralmente superados, razão do uso
de filtros pixelados que dissolvessem e distorcessem a aparência dos genitais e a exposição
integral da nudez.


Em suma, Desvio, tornou-se uma memorável e inédita experiência de imersão artística, de
ampliação dos sentidos, de uso da sensibilidade e da intuição combinado com uma dose
extra de ousadia e coragem. O autor fez uso de uma série de repertórios pessoais e
profissionais para a concepção de uma obra sem a participação de outrem em todas as suas
etapas. O resultado reflete uma busca individual por novas formas de expressar a si mesmo
por meio da arte, de expandir seu emocional e pessoal: ambos em eterna fase de conclusão,
questionamento e inquietude.


bibliografia
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Orfeu Negro, 2018.
PLASSARD, Didier, O pós-dramático, ou seja, a abstracção. Dossiê temático, 2012

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