O caminho de santiago não existe (parte 2)

Dia 3

De fato, eu dormi bem mais. Depois de uma jornada exaustiva, julguei que merecia um pouco mais de descanso para a próxima caminhada. Acredito que eu não aproveitei bem os dois primeiros dias de jornada. Não que não houvesse saboreado as trilhas, o fazer, o processo.

Lembro-me de que estava ainda ansioso com relação à volta. Estava preocupado com o tempo que teria para fazer tudo, para voltar para Lisboa. Eu e os meus planejamentos, ou a falta deles. Uma briga necessária. Às vezes escrevo o que vou fazer, noutras, só faço. Algumas vezes erro, noutras acerto, noutras faço merda.

O olho no papel faz as coisas ficarem mais claras. Me lembrei de uma única vez em que fui para o papel com uma caneta e comecei a fazer as contas das finanças envolvidas em um projeto do qual fazia parte já há um bom tempo. O dinheiro não tinha previsão de quando nem como entraria. As portas, fechadas, quase todas, e nós a tentar abri-las, ver se algo acontecia, desbravadores.

Nada. E no meu coração, o desejo de fazer outra coisa, ainda latente, escondidinho, perturbando minhas noites. Foi depois de um choque ao ver uma folha de papel riscada do início ao fim que eu vi: era hora de tomar uma decisão difícil.

Foi então que eu saí do projeto. Dois ou três meses depois, estava a viajar para a Irlanda, na viagem que seria a viagem da minha vida.

E ali estava eu, novamente, com um papel, a fazer contas do tempo que teria para chegar a Santiago até o domingo, pois a viagem de volta para Lisboa já estava marcada.

Fiz um desajuno levíssimo (os espanhóis comem quase nada no café da manhã, só uma torradinha com alguma coisa em cima, um suco de laranja e um café; fico pensando como nós, brasileiros, especialmente quem é do Norte e Nordeste, sabe o que é um café da manhã farto, com cuscuz, macaxeira, inhame, batata, bolo, ovo, queijo, pão, o que vier pela frente! Pense numa fartura que deixa o bucho de neguinho cheio até o jantar! Na Espanha, só farta tudo mesmo. E um pedacinho de pão segura ninguém?).

Conversei com a moça que estava a servir na recepção e fazendo os check-outs. Ela me orientou sobre o caminho. Fiquei ansioso, ansiosíssimo. Segundo os meus cálculos, eu teria que fazer duas etapas por dia. Ela me disse que havia feito o caminho dessa maneira, mas que, claro, tinha sido muito exaustivo.

Ela não recomendava. No entanto, eu me sentia forte, eu estava realmente forte e falei que tentaria, ao menos, naquele dia. Ela foi muito simpática e prestativa. Em Tui, fala-se galego, mas eu tentava o tempo todo me forçar a falar espanhol, claro, naquele portunholzinho básico que dói um pouco nos ouvidos e é melhor que qualquer coisa.

Quando deixei o hostel, fui ao mercado. Foi então que me lembrei: havia esquecido de pagar a conta. Voltei correndo, acertei tudo, pedi desculpas. Ela sequer havia se dado conta disso, mas é bom fazer nossa parte.

Infelizmente, os brasileiros não costumam ter uma boa reputação internacional, e isso vem se agravando fortemente nos últimos anos. As inúmeras crises políticas e a postura do atual presidente acabam por não contribuir para uma imagem positiva do país no exterior.

Cabe a cada um fazer ao máximo sua parte, em formiguinha mesmo, pra que as pessoas de outros países, se não mudem suas opiniões ou impressões, ao menos percebam que generalizar é sempre um erro.

Após uma breve passagem ainda em trecho urbano, o caminho me levou para o meio de deliciosos parques, bosques, trilhas florestais – um alívio para o dia escaldante pela frente. Encontrei uma família inteira de espanhóis que estavam fazendo o caminho. Nada mais nada menos que três crianças e seus pais. Simpáticos, conversamos um pouco enquanto descansávamos daquela manhã quente.

Meu deus, mas o que estamos fazendo aqui, no meio de uma pandemia??? Somos doidos?” eu perguntei. Eles riram. Os espanhóis enfrentaram severas restrições de locomoção no auge da pandemia. Em algumas regiões, nem mesmo sair de casa para um simples passeio era permitido. Imagino o sofrimento de 5 pessoas trancafiadas em um espaço, pequeno ou não.

Fico pensando nas famílias perseguidas pelo regime nazista, como a família da eterna Annie Frankie, enclausurada em um cubículo, à espera da morte, à espera do pior. Uma dura lição o ano de 2020 nos trouxe e ainda não entendemos o porquê.

E ainda há pessoas que não puderam cumprir o doloroso, mas culturalmente necessário, ritual de despedida. Enterrar os mortos, eis um direito dos que estão vivos. Não seguir esse processo é como uma ferida tapada com o dedo e não com uma bandagem própria. O direito de sentir e expressar a dor é um direito tão necessário quanto o direito de comer.

Na Irlanda, nos internatos das irmãs Madalena, um capítulo lascivo da história recente do país, as mulheres eram mandadas para lá e privadas de qualquer contato com o mundo. Qualquer reação emocional era extremamente proibida e punida com castigos dolorosos.

Eram obrigadas a uma rotina integral de trabalhos, torturas e a comunicação entre elas também não era permitida (ainda vou escrever um romance histórico sobre esse trágico episódio da Irlanda). O ser humano não foi feito para a prisão, ainda mais quando ele próprio não entende seus crimes, quem diria Kafka, nO Processo.

Viagens mentais e filosóficas à parte, aquela família, ainda que visivelmente cansada, estava ali, livre, solta, para voar por entre as inúmeras setas e direções do Caminho. Ficamos amigos e nos reencontramos várias vezes. Em algumas, eu descansava, em outras, eles.

Com o avançar das horas, o sol fustigante, a mínima sombra era um verdadeiro alívio. Fui ao máximo de mim, até chegar em O Porrinho. Lá eu vi que não teria condições físicas de continuar a caminhada até o próximo ponto: Redondela. Ainda tentei buscar um veículo, para pular uma das etapas, mas não havia mais trens ou autocarros. Procurei um hostel. Almocei em um restaurante – comi uma salada que tinha tanto sal que podia conservar carne seca.

Voltei para o hostel. Dormi. Dormi um sono tranquilo, embora ansioso. A ansiedade insistia em me acompanhar. Foi então que planejei o outro dia, com mais calma. Meus cálculos indicavam que, para chegar a Santiago no domingo, eu teria que pular uma das etapas.

Decidi que, no outro dia, caminharia até Redondela, de lá, pegaria um trem para Pontevedra, de onde seguiria caminhando para Caldas de Reis – o penúltimo ponto da jornada. Comprei o café da manhã do outro dia. Me estabeleci para acordar na madruga, assim como os outros peregrinos que encontrei em Tui. Eu tinha que fazer isso, para render bem, muito bem, a caminhada mundo afora, e evitar o sol.

Ainda escrevi um pouco, porém, o cansaço físico me impedia, ou foi simplesmente preguiça ou falta de inspiração. Não que seja necessário inspiração para escrever sempre. Não escrevi. Achei que ainda não era o momento. Pensei por mim que poderia escrever essas memórias em outro período, a posteriori.

Elas viriam, de uma forma de outra. E vieram, junto com outras memórias e outras ideias, e outras palavras que, direta ou indiretamente, conversam entre si e fazem parte do meu arsenal de memórias.

Dormi.

Dia 4

5h30 am.

Estava escuro ainda quando acordei. Só consegui sair da cama às 6h. Tomei o café da manhã e parti, madrugada afora, pelas ruas escuras da cidade, ainda fria. Um céu de azul puro, limpo, com muitas estrelas, uma lua imensa. As ruas silenciosas, com quase ninguém.

Lembrei de quando trabalhava de madrugada, como zelador, de um hotel. O silêncio das noites era uma constante. O primeiro dia de trabalho foi apavorante: eu começava as noites limpando corredores silenciosos. As luzes piscavam.

Havia uma máquina de gelo que funcionava a madrugada inteira, sem parar, e fazia um barulho como se estivesse viva, quebrando alguma coisa dentro dela. Além dos corredores por detrás da recepção, pelos quais o staff andava, havia os corredores dos andares.

Lá pelas 4h ou 5h da manhã, eu tinha que andar por todos os andares para verificar se os hóspedes teriam deixado a placa para o café da manhã, pratos e talheres para serem recolhidos, além de ver se estava tudo em ordem.

Os corredores eram imensos e lembravam o clássico O Iluminado, do Kubrick. Eu andava por esses túneis e nem preciso dizer que inúmeras vezes eu parava e olhava pra trás pra ver se tinha alguma alma penada perto de mim.

Uma vez eu estava fazendo esse procedimento e o que foi que eu ouvi? Os sons e gemidos loucos de um bom sexo. O negócio tava tão bom (ou parecia estar bom, ninguém fingiria daquele jeito, penso eu) que a vontade foi de perguntar se tinha vaga pra mais um. Claro, né?

Na saída da cidade, havia um túnel escuro, para o qual a seta indicava ser a continuação. Fiquei um pouco receoso: ainda era noite, estava sozinho, e o lugar era um tanto ermo, e eu adoro lugares ermos, com um toque de assombração (fiz uma série de fotos de lugares assombrados e assombrosos da Irlanda em meu Instagram).

Afinal segui. O que tinha de acontecer? Nada! A cabeça vem com ideias, com medo. Não escutei. Depois que o túnel passou e eu avancei, uma caminhada gostosa me esperava, por ruelas bem pequenininhas e ainda uma trilha de trem que parecia abandonada – um cenário bastante bucólico, nostálgico.

Progredi bem. Creio que foram quase 3 horas de caminhada sem intervalos. Até que o dia chegou e eu parei em frente a uma igreja, em um povoado que eu não me lembro o nome. De repente, um carro surgiu na rua e veio em minha direção. Parou. De sua janela saiu um senhor, que me chamou algumas vezes. Tinha um sorriso tranquilo, um ar amigo.

Ao me aproximar, me entregou uma conchinha e um papel com os desenhos do caminho (foto acima). Deu felicitações e desejou-me ânimo para continuar. E de fato, eu senti o ânimo voltar a mim. Que simpatia! Comi uns chocolates e fui caminhada pela estrada e pela floresta. Alcancei um ponto onde havia a indicação de duas possíveis rotas.

Uma delas, a menina do hostel em Tui já havia me indicado para fazer: era a rota pela floresta, pois, embora fosse maior, era um caminho mais agradável do que a outra, pelo asfalto, um caminho reto, só de concreto. Segui seus conselhos e um tempo depois estava pelas ruas de Pontevedra.

A caminhada foi bem agradável, mas as costas doíam. As costas sempre sofrem mais, por menos peso que levemos. Eu poderia ter levado ainda menos coisas, menos roupas. Porém, o corpo reclama. A mente e o corpo nem sempre estão no mesmo compasso. Um diz sim, outro não. A energia de um nem sempre está disponível para que o outro faça, mesmo que sua vontade seja sim.

Ao chegar em Pontevedra, me recordo bem que eu já não vinha me sentindo bem. Sentia-me um pouco indisposto, não sei se febril, mas estava com cansaço acumulado. Comi um lanche durante o almoço, e me senti melhor. Peguei o trem para Caldas de Reis e vi que uma bela parte do caminho eu havia perdido: paisagens de praia, rio, natureza exuberante.

Viver é escolher e arcar com as perdas. As perdas podem doer mais do que os ganhos, mas fugir da dor é fugir da vida. Naquela janela, eu vi que tinha escolhido perder aquele caminho. Mas era assim ou não conseguiria realizar meu objetivo.

O dia estava agradável.

Finalmente, eu saboreava a caminhada para Santiago de Compostela.

Em Pontevedra, fui recebido pelo escaldante sol da tarde, o sol das 14h. O primeiro trecho era integralmente urbano. Cruzei ruas, sinais de trânsito. Assim que cheguei, notei um grupo de peregrinas todas numa faixa etária parecida e acima dos 50. Algumas tampouco usavam o bastão de apoio para caminhada, que eu usava.

Eu fiquei pensando, olha só que lição de vida, hein? Olha só que lição eu estava a receber naquele exato instante. Existe idade? Ou existe um tempo? Existe o teu tempo, o nosso tempo. É nesse tempo que a gente pode ser o que podemos ser.

Eu não sabia quanto tempo aquelas mulheres corajosas, desbravadoras e jovens idosas teriam para fazer o caminho. Eu não sabia de onde elas tinham começado, quantos dias, horas ou minutos elas haviam começado e até onde elas iriam. Mas elas estavam ali, naquele sol tremendo, passo a passo, superando a si mesmas, em busca de vida.

As horas passaram e eu no passo a passo em minha caminhada silenciosa e solitária. Foi o dia em que mais tempo passei sozinho, depois que saí da cidade. Na televisão de meus olhos, apenas paisagens bucólicas, árvores, alguns trechos de asfalto.

Passo, passo, outro passo, outro passo… o tempo, tudo, e muito nada. O que fazer nesses momentos? Ouvir música. Sim, pra ter mais energia mental. Ajuda sim, viva a tecnologia, que nos liberta e escraviza, junto e misturado.

Eu havia feito o hikking na Irlanda um ano antes e não toquei um momento no celular. Mas ali, no caminho de Santiago, era mais que o dobro de horas. Naquele dia, eu faria perto das 10 horas de caminhada, entre intervalos de alguns minutos.

Estava sendo o dia mais longo de todos. Eu pensei que estava acostumado a tantas horas ali, no passo a passo. Engano meu. Eu estava bem, não sentia nada, apenas o cansaço, principalmente nos olhos.

A gente pensa de tudo: pensa no trabalho, na família, nos amigos, no sexo – em alguns momentos, eu só pensei em sexo. Fiquei ali, relembrando transas ótimas que tive, e outras ruins (claro).

Ria delas. Lembrava do prazer que o sexo proporcionava. Lembrava do bem-estar que um bom sexo (ou mesmo um ruinzinho) gerava no ser e como era ruim ficar muito tempo sem fazer. Eu voltaria a me lembrar de sexo no dia seguinte, mas de propósito, como uma forma de manter a mente ocupada e sair dali, daquele trote monótono, por algum momento.

A gente lembra também de outras coisas, mas principalmente de pessoas com quem você teve alguma coisa ruim. Pelo menos, comigo foi assim. Coisas idiotas que você teve com essas pessoas. Algumas dores da vida, alguns prejuízos. A gente lembra de coisas boas também. Essas nos alimentam, nos deixam mais alegres.

Não sei se você faz o mesmo, mas eu costumo lembrar de coisas que me fizeram rir e dou risada no meio do nada, apenas recordando. Meu riso sempre foi muito frouxo e nem sempre é sinal de alegria: pode ser nervosismo, pode ser uma defesa para evitar a timidez; pode ser tudo.

As horas se passaram e o cansaço quase a me exaurir. O momento mais dramático foi quando eu já estava bem perto de chegar ao meu destino. A água havia acabado e eu já não queria mais comer as baboseiras que carregava na bolsa. Todo meu corpo doía, não somente os olhos e as costas.

Foi quando eu vi na estrada uma placa que aqueceu meu coração: Santiago de Compostela.

Não acreditei, mas estava lá, quase, quase lá.

Depois dessa placa, eu passei por várias vinícolas e plantações. Cruzei becos e ruelas, por entre as vilazinhas que apareciam no caminho. Cansado, já não conseguia pensar em mais nada. A música já não fazia efeito mais e ainda tinha fome. Empurrei-me com as pernas já bambas. Empurrei-me por dentro.

Em um certo momento, eu percebi que já não tinha mais corpo. Eu era tão simplesmente uma alma penada, um ser flutuante. Eu era um nada a voar por aquele chão, enquanto segurava um bastão que fazia um barulhinho bobo ao tocar a ponta no solo.

Eu estava no auge de meu cansaço. E percebi que só havia uma coisa que eu pudesse fazer: pensar. Pensei, pensei, pensei. Pensei em tudo. Minha vida passou pelos meus olhos. Comecei a conversar comigo mesmo, a buscar forças em algum pedaço lá dentro.

Travei um diálogo interno franco. Tentei ser positivo, ao máximo. Tentei ver o lado da aventura, o lado do risco, do perigo, da excitação.

Encontrei forças que não sabia que existiam. Hoje lembro dos dias de carnaval no Recife, quando a festa terminava perto das seis da manhã. Eu me guardava para o último dia, quando meus shows favoritos explodiam na praça do Marco Zero, Alceu Valença e Elba Ramalho, seguido do arrastão de Frevo que cruzava as ruas do sítio histórico.

Eu encontrava energia de onde não tinha para continuar tendo o direito de manter-me de pé, a festejar, a brincar, a pular, a dançar, enquanto quase todos apenas estavam de pé, exauridos após uma madrugada inteira de festa.

Não sei o que ocorre com o corpo ou a mente, mas existe uma reserva de energia que emerge quando suas energias mais superficiais se esgotam. Ali eu estava à base disso, de um pedaço de força que não sabia de onde vinha, mas havia subido e me mantinha de pé.

Acho que ainda andei umas duas horas usando essa última reserva, até chegar a Caldas de Reis. E ainda com o resto de minhas forças, procurei um hostel. No primeiro a que me dirigi, percebi que o dono havia aumentado o preço. Não sei se eu estava certo, foi minha intuição que disse que ele não estava sendo honesto. Agradeci e saí de lá.

Procurei outro hostel e achei um com um preço acessível, quarto individual e café da manhã. Foi lá onde fiquei.

E foi lá onde apaguei.

E NO PRÓXIMO CAPÍTULO, O “FIM” DESSA AVENTURA.

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