Frevo: dança, ritmo, magia e história.

“O Frevo tá no sangue do povo. No morro, na rua. O Frevo deixa o povo louco. Leve, afoito. Atiça a gente a se amar, não dá pra segurar, não dá pra segurar”. (Lula Queiroga).

 

A palavra Frevo foi registrada pela primeira vez no Jornal Pequeno, do Recife, no ano de 1907, sábado de Zé Pereira. Segundo o historiador Leonardo Dantas, em seu ensaio O Frevo Pernambucano, a troca de ordem das letras “e” e “r” resultou da maneira como as pessoas mais humildes flexionavam o verbo “ferver”.

Outro estudioso do tema, José Ramos Tinhorão, conta que o frevo é criação de músicos brancos e mulatos. Grande parte desses artistas vieram de bandas militares, como tocadores de marchas e dobrados, ou integrantes de grupos especialistas em música de dança do final do século XIX: polcas, schottisch (antiga dança de salão escocesa), tangos, quadrilhas e maxixes.

Mas o frevo nasceu mesmo foi no coração das classes trabalhadoras, que ainda nesse mesmo período se organizavam em agremiações carnavalescas, os “clubes pedestres”, e foram ocupar os espaços urbanos antes dominados apenas pelos chamados “clubes de alegoria e críticas”. Estes grupos detinham a hegemonia das ruas e eram comandados pelas oligarquias locais, que não davam espaço para os mais pobres, e buscavam mostrar um carnaval “inteligente, culto e bonito”.

O frevo não convida. Arrasta. Sua efervescência rítmica é qualquer coisa de imãtético, contra a qual é difícil resistir.”

Valdemar de Oliveira


Mas não há como desvencilhar a origem do Frevo da história do próprio carnaval no Brasil, que começou com o entrudo, festa pagã europeia realizada por aqui pela primeira vez com a chegada dos colonizadores portugueses. E não pense que era tudo bonitinho, no seu lugar, era uma
lambança só: famílias e conhecidos disputavam partidas, promoviam brincadeiras, algumas bastante agressivas, com muito mela-mela com todo tipo de material (por exemplo urina, quando ocorria nas ruas) e frequentemente a polícia era acionada.

O entrudo chegou a ser proibido oficialmente, sempre em vão. Em Pernambuco, no século XIX, a brincadeira passou a assimilar costumes africanos inclusive no desenho de muitos passos do Frevo.Desse clima de embate, o frevo veio como bandeira de resistência, levantada pela população mais simples, a qual brigava pelo direito a um carnaval mais popular.

A partir da década de 1880, surgem os clubes pedestres, que receberam esse nome em função da maneira como se apresentavam: a pé, portando estandartes, e seus sócios formando os cordões. Essas novas formações tomaram conta das ruas e, posteriormente, passaram a receber proteção policial, à época, principal símbolo da presença do poder público nas camadas mais carentes.

DANÇA QUE “FREVE”

O frevo, tal qual é hoje conhecido, com seus passos acelerados, de ritmo elétrico, tem origem nos praticantes de capoeira que vinham à frente das bandas para intimidar grupos rivais. A dança é de cunho individualista: cada um executa os passos que quiser, geralmente sem qualquer tipo de combinação coreográfica, ou parceria. “A vibração paroxística do frevo é realmente uma coisa assombrosa. Que beleza! Que leveza admirável!”, já disse o escritor Mário de Andrade.

A popularização do ritmo pelas gravações em disco e a divulgação promovida pelos programas de rádio foram decisivos para sua diversificação nas modalidades de frevo de rua, frevo de bloco e frevo-canção. (Ver box no final da matéria com mais detalhes).

Frevo Vivo

A MARCA DE CADA ARTISTA

Quem faz a arte é o artista, o povo, e o Frevo conta com um “arsenal” pesado de representantes que contribuíram para a composição de suas letras e variações rítmicas. Um dos mais reconhecidos nomes, sem sombra de dúvida, foi Lourenço da Fonseca Barbosa, o eterno Capiba. Filho de músicos, nasceu em Surubim, Zona da Mata Norte de Pernambuco e mudou-se para o Recife aos 26 anos.

Escreveu mais de 200 canções, embora há indícios de que tenha produzido muito mais, e teve diversos parceiros ao longo de sua carreira, como João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira e Carlos Pena Filho. Dentre seus Frevos mais famosos, estão Madeira que cupim não rói (1963), Maria Betânia (gravada por Nelson Gonçalves em 1945), É de amargar (um dos Frevos mais tocados na história de Pernambuco, reconhecido até fora do país).

E se você conhece os nomes Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon ou já ouviu falar deles, então já entrou em contato com a arte de Nelson Ferreira e uma de suas mais famosas composições, a Evocação N° 1. Pernambucano da cidade de Bonito, onde nasceu no ano de 1902, começou a carreira artística aos 13 anos de idade, quando tocava em cafés noturnos, como o Café Chile, na Praça da Independência, Centro do Recife.

Compôs valsas e chegou a tocar em orquestras que acompanhavam os filmes mudos exibidos nos cinemas da época. Na Rádio Clube de Recife, viveu a era de ouro do rádio pernambucano, e compôs centenas de obras variadas, entre Frevos-de-rua, Frevos-de-bloco e Frevos-canção.

Em 1957, tornou-se conhecido nacionalmente com “Evocação”, gravado pelo tradicional Bloco Carnavalesco Batutas de São José, e que chegou a fazer sucesso nos carnavais do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao todo, compôs sete Frevos da série Evocação. Uma de suas mais famosas composições tornou-se hino do Sport Club do Recife, o “Casá, casá”.

Ainda da antiga geração, Claudionor Germano é outro destaque na história do Frevo. Irmão do artista plástico Abelardo da Hora e pai do também cantor de Frevo Nonô Germano, a trajetória de Claudionor sempre esteve ligada ao trabalho de Capiba e Nelson Ferreira e sua carreira começou em 1947, na Rádio Clube de Pernambuco como croner do grupo Ases do Ritmo.

De lá para cá foram 478 músicas gravadas em 31 discos. Em 2015, anunciou sua aposentadoria dos palcos e passou o bastão, em pleno desfile do Galo da Madrugada, maior bloco carnavalesco do mundo, para o filho, Nonô Germano. Com uma vida inteira dedicada ao Frevo, ele faz um apelo para que as rádios deem mais espaço ao ritmo.

 “Tem muita gente com coisa boa para mostrar e dependente de oportunidade. Nenhum artista sobrevive sem divulgação. Eu, por exemplo, gravei várias músicas bonitas e dignas de serem ouvidas, mas não me atrevo a cantá-las no carnaval, pois ninguém conhece”, protesta.

Responsável por sucessos que ressoam carnavais Brasil afora, o olindense Alceu Valença dispensa apresentações e segue cativando novos amantes dessa arte. Além dele, Almir Rouche, Nena Queiroga, Elba Ramalho (que todos os anos arrasta uma multidão para o encerramento do Carnaval do Recife), André Rio, Gustavo Travassos e orquestras como a Arruando seguem ampliando o alcance e a presença dos acordes e letras do mais frenético dos ritmos brasileiros.

 

RENOVAÇÃO

Os novos passistas e admiradores também encontram referências na contemporaneidade que estão renovando seus passos e composições. Um desses nomes é a SpokFrevo Orquestra, comandada por Inaldo Cavalcante de Albuquerque, o conhecido Maestro Spok. Natural de Igarassu, começou sua carreira na música aos 13 anos e mudou-se para o Recife nos anos 80, quando trabalhou com mestres do gênero, como José Menezes, Guedes Peixoto, Nunes, Duda, Edson Rodrigues e Ademir Araújo.

Os olhos e ouvidos, do artista, no entanto, não ficaram restritos ao frevo em si e, no intuito de remodelar a música, buscou no jazz uma forma de dialogar com o mundo e ter mais liberdade na sua composição. “Eu via aqueles músicos improvisando e me perguntava por que não se poderia fazer o mesmo com o frevo, que eu tocava tão tradicionalmente, seguindo a partitura, enquanto aqueles músicos faziam jazz”, questiona.

Outro músico que conquistou os palcos no Brasil e no exterior e também é apontado como símbolo de renovação artística do gênero é o Maestro Forró e sua tradicional Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, criada em 2002 no bairro de mesmo nome da Zona Norte do Recife. Frevos autorais, clássicos, embalados por coreografias criativas, irreverentes e bem humoradas, além de apresentações em que os integrantes do grupo interagem com o público são suas principais marcas.

NASCIMENTO DO PASSO

Tesoura, ferrolho, parafuso, dobradiça, locomotiva. No mundo “real”, essas palavras designam objetos e ferramentas, mas no mundo mágico do Frevo, esses são os nomes dos passos que eletrificam o corpo de passistas profissionais ou amadores. Segundo Cláudia Lima, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, o caráter de improviso dos passos, com o avançar dos anos, foi substituído por determinados arquétipos.

A origem do passista, de acordo com a estudiosa, veio com os capoeiras e seus passos de dança, inicialmente embalados por marchas e, posteriormente, pela música do Frevo. A sombrinha aparece como um complemento à dança, que ajuda a dar equilíbrio nas acrobacias e serve como seu símbolo cultural.

E dentre os diversos pesquisadores desse universo efervescente, um deles teve como principal legado uma extensa identificação e catalogação dos seus mais diversos saltos e movimentos: Francisco do Nascimento Filho, ou simplesmente, Nascimento do Passo. Nascido no Amazonas, viajou para o Recife aos 14 anos, trabalhando como carregador de frete no porto e engraxate.

Era a década de 1950 e o Frevo, a grande sensação do carnaval pernambucano, com a apoteose de compositores como Antônio Bandeira, Capiba e Levino Ferreira. As rádios locais, como a Rádio Clube e a Rádio Tamandaré, tinham suas próprias orquestras e promoviam concursos de passistas.

Em 1958, Nascimento do Passo, já um passista profissional, conseguia se destacar nas concorridas competições realizadas nessa época e alcançava notoriedade nos principais jornais. Em 1973, o dançarino realiza um sonho antigo: funda a primeira escola de Frevo de Pernambuco.

Falecido em 2009, vítima de um câncer no estômago, Nascimento chegou a catalogar mais de 100 passos, mas uma de suas máximas era de que “o número de passos que existe, é a quantidade de pernambucanos que vivem”, sempre afirmando que cada passista tem o seu jeito próprio de dançar.

Um de seus mais notórios discípulos, Otávio Bastos, leva hoje o frevo ao mundo inteiro e faz questão de incorporar à sua metodologia a vertente de seu mestre, com enfoque maior nos movimentos de rua, marcados pela espontaneidade e naturalidade de cada dançarino, o chamado Frevo Improviso.

Para ele, o legado de seu professor ultrapassa as fronteiras da cultura pernambucana e adentra no universo artístico nacional. “Imagina um cara que veio de outro Estado e começa a formalizar, a pensar no Frevo como uma técnica de dança e organiza alguns passos. Isso tudo tem uma tamanha importância, não somente para a dança pernambucana, mas pra dança brasileira.

É uma tentativa de formatação, de método, e sim, é um método criado pelo Nascimento do Passo que é desenvolvido ainda hoje por alguns grupos ou alguns grupos que partiram desse método para poder desenvolver suas próprias linguagens. Muito do que existe hoje, na cultura do Frevo, tem muito a ver com esse Nascimento do Passo”, conta.

Otávio também destaca a sensibilidade artística do Nascimento como fundamental no seu ofício de dar nomes às múltiplas expressões corporais nomeadas por ele. “Outro legado é a percepção da beleza que está no entorno. Na época dele, muito da arte que se praticava vinha de fora, então a ideia de beleza era uma beleza externa. Nascimento do Passo começou a encontrar beleza no vizinho, no cara do meio da rua, no bêbado dançando Frevo, isso é muita importância pro povo se reconhecer, o povo se entender mais”, assinala.

Em homenagem ao amigo e mestre, Otávio lançou o espetáculo Para: Francisco, que surgiu também da necessidade de falar, segundo ele, “as palavras não ditas”. “Para Francisco surgiu a partir de uma outra pergunta: o que você diria para alguém que já se foi?

Eu pensei que tem a ver diretamente com essas palavras não ditas, palavras que a gente não consegue falar para determinadas pessoas e que acaba que essas pessoas falecem e a gente não consegue falar, desde um obrigado, até um desculpe, e assim vai. Eu pensei, para quem eu falaria, então eu falaria para Nascimento do Passo e o que eu falaria eu não saberia falar em palavras”.

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Turma do curso “Frevo & Improviso”, do mestre Otávio Bastos (o mais alto). Curso é realizado durante o ano inteiro, no Paço do Frevo, do nível básico ao avançado.

FREVO 365 DIAS POR ANO

Para quem achava que somente seria possível entrar em contato com o Frevo durante a folia de momo, os tempos são outros. O próprio Otávio é professor do Paço do Frevo: local de culto e salvaguarda do ritmo, localizado no coração do Recife Antigo, ao lado da Praça do Arsenal da Marinha, e que oferece durante o ano inteiro exposições, oficinas, debates, palestras, encontros, seminários, além de dispor aos visitantes um acervo de livros e documentos audiovisuais para pesquisas acerca da história cultural brasileira. Ainda, cursos de canto, orquestra, pilates, dança, para os mais variados níveis de formação, com turmas que rapidamente lotam.

Já os amantes da rua vão adorar as aulas gratuitas promovidas na Praça do Hipódromo, no Recife, pelo grupo Guerreiros do Passo, inteiramente formado por outros discípulos de Nascimento do Passo. Desde 2005, eles promovem o projeto Frevo na Praça, e vêm despertando o interesse de estudiosos do Brasil e do exterior e, frequentemente, são convidados para aparições em veículos de comunicação.

Outros nomes que lutam pela manutenção e popularização do ritmo são os Brincantes da Ladeira, de Olinda, o Professor Alexandre Macedo, Juninho Viégas (dançarino), o grupo Frevo Eterno, o Comitê de Salvaguarda do Frevo (que tenta politicamente brigar pela classe) e a Cia de Frevo do Recife.

Estilos de Frevo

Frevo-de-Rua

O Frevo de Rua pode ser visto como uma das expressões mais tradicionais dessa manifestação artística, com ausência de letra, feito apenas para ser dançado. Dentro da música, é possível notar a presença de três classes: o frevo-abafo, ou de encontro, com preponderância dos instrumentos metálicos; o frevo-coqueiro, com notas agudas; e o frevo-ventania. Dentre as composições mais famosas desse tipo estão o Vassourinhas (1909), de autoria de Matias da Rocha, considerado hino do carnaval pernambucano.

Frevo-canção

O Frevo-canção, ou marcha-canção, é mais melódico, com presença de letras e em vários aspectos semelhante às marchinhas cariocas, como uma parte introdutória e outra cantada. Mestres desse estilo são Capiba, (Na mulher não se bate nem com uma flor); e Alex Caldas (Hino de Pitombeira).

Frevo-de-Bloco

Por último, o frevo de bloco, que provavelmente se originou de serenatas, em meio aos carnavais de rua do início do século XX. Famosas composições dessa modalidade são Madeira que cupim não Rói, também de Capiba, e Evocação n° 1, de Nelson Ferreira.

Frevo-eletrizado

Pode ser considerado como pertencente à quarta variação do frevo, com o uso das novas tecnologias e da sonorização elétrica, com vasto poder de alcance. O principal símbolo desse novo tipo é o trio elétrico, com um grupo de pessoas responsáveis pela parte técnica e cênica, com cantores, músicos e bailarinos.

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