Chegar à capital pernambucana é ser recebido pelas buzinas dos carros e um sonolento “anda-e-freia” de constantes engarrafamentos, a qualquer hora do dia. Recife corre o tempo todo. Só não corre mais porque seu trânsito não permite.
Voltar ao Recife foi também a oportunidade de perceber o quão o país piorou suas desigualdades sociais: muito mais pedintes, pessoas em situação de rua, comerciantes informais, e uma sensação de perigo quase constante.
Voltar ao Recife é voltar a andar alarmado pelas ruas, com os olhos na frente e atrás, usar o celular com cautela, perceber quem pode estar ao seu lado ou atrás de você; vestir-se de forma simples para não chamar atenção, evitar caminhos e ruas escuras e desviar se vir alguém que te provoque desconfiança.
É ter que andar no ônibus com o celular dentro da cueca e saber que, a depender de onde você estiver, o motorista de Uber não vai pensar duas vezes em cancelar a viagem.
Na primeira vez em que caminhei pelo Recife, no dia da montagem do exuberante Galo da Madrugada, a escultura instalada na Ponte Duarte Coelho durante os dias da folia de momo, tive uma pequena crise de ansiedade.
Eu estava no Shopping Boa Vista e de repente uma enxurrada de pensamentos negativos veio à minha cabeça. Saí dali e fui andar pela cidade, olhando para todos os cantos.
Pode soar exagerado, mas não é fácil se reacostumar a esse modo de vida, que brasileiros de todas as regiões conhecem muito bem, sim senhor. Com o passar das horas, minha cabeça voltou ao lugar e eu percebi que ainda sabia estar naquele mundo.
Andar pelo Recife exige “saber andar”, ou seja, entender essa dinâmica mental e corporal para transitar na cidade apesar da frequente sensação de insegurança.
Claro que essa sensação foi um pouco mais alarmada por conta desse choque cultural e porque a cidade fervia de gente de fora e seu centro estava abarrotado. Passado esse susto, fui ver o Recife Antigo.
No caminho, a barulheira típica de uma cidade grande, com muito Brega por todos os cantos. Havia também muita gente feliz, muita gente rindo, contente, muitos comerciantes populares felizes em ver de volta a mais importante das festas e conseguir um dinheirinho extra na sua renda.
Apesar da insegurança, Recife sorriu pra mim, com o povo nas ruas ansioso para ver os blocos, as atrações do Marco Zero, o clima de Frevo no ar. O Frevo por todos os cantos, misturado ao Brega, ao Axé, a tudo que faz o Nordeste brasileiro ser tão fértil em produção cultural genuinamente popular.
O povo produziu o Frevo para disfarçar a Capoeira, um esporte proibido no início do Século XX. Quando um guarda passava por perto de um “Capoeira”, este disfarçava um possível golpe com uma dancinha engraçada, que era acompanhada por um grande guarda-chuva que protegia o povo do sol escaldante.
Com o som das orquestras, aqueles passos engraçados ganharam variações e logo o povo todo começou a pular de modo desengonçado e com uma estética própria muito forte, que foi apelidada como Frevo, uma distorção do verbo Ferver (eu escrevi uma matéria sobre o Frevo que pode ser lida integralmente aqui).
O Brasil voltava às ruas para a folia de momo e o Recife, e sua irmã Olinda, aguardavam ansiosamente pela sua chegada.
Ao chegar ao Marco Zero, fui presenteado com um maravilhoso desfile de afoxés.
Cores por todos os lados. A capital pernambucana se travestia de luzes, lantejoulas, ritmos mais lentos e relativamente fáceis de serem imitados. O afoxé põe na rua a cultura, o brincar, os ritos das religiões de matiz africana, com a beleza de seus orixás e divindades.
A cada intervalo de uma canção para outra, os grupos repercutem suas principais causas: um movimento com forte apelo político, de consciência social, de atenção às necessidades que afligem a comunidade afrodescendente, a maior do país.
O Brasil é um país de pretos, a maioria da população é originariamente preta. Entender essa ancestralidade é perceber que devemos muito ao continente africano, com suas milhões de expressões culturais e contribuições artísticas.
Nos dias a seguir, me joguei pelas ruas, ladeiras, paixões e paixonites de Olinda, com direito a muito Axé, uma bebidinha composta por aguardente e um misterioso composto de ervas (e é capaz de fazer milagres com seu teor alcoólico de mais de 30%).
A princípio, eu ficaria no Recife, mas a dificuldade que teria de voltar para casa à noite me fez repensar.
Um novo grupo de amigos me recebeu e nos unimos com alegria e uma bela sintonia pelas horas em que subiríamos e desceríamos os quatro cantos da cidade que desde os quatro meses finais de 2022 já se remexia com os ensaios de seus infindáveis grupos culturais.
Os anos passados, antes de sair do Brasil, eu vivi mais o carnaval do Recife, de modo que quando eu decidia ir para Olinda, viver sua folia de ladeiras, a experiência foi bem diferente. Era como se minha energia, meu pensamento, estivessem parcialmente conectados ao Recife e desconexos da sua cidade-irmã.
Assim, o sobe e desce das ladeiras abarrotadas não parecia muito interessante, como se eu estivesse frio para ter aquela vivência. Até me sintonizar com as ladeiras, eu precisava de tempo e uma dose extra de preparação. Neste ano, porém, como estive alojado em uma casa de Olinda, e caminhei com olindenses, entrar nesse caldo cultural foi muito mais fácil e fluido.
A começar pelo Bloco da Lama, que substituiu o Galo da Madrugada na minha jornada carnavalesca. Eu e meu amigo, o gaúcho Will, caminhamos pelas ruas quentes e apertadas das Olindas em buscas do local onde poderíamos nos lambuzar de lama de argila para depois seguir pelas ladeiras abaixo. Eu ainda tinha a esperança de rumar para o Recife, mas logo me percebi tomado pelo sobe-desce das ladeiras.
O hálito do povo, a respiração ofegante da multidão, o empurra-empurra: tudo faz parte de uma experiência carnavalesca genuína e popular. Quem busca conforto, não se joga nos blocos olindenses, que por muitas vezes impedem os movimentos do corpo e nos devoram integralmente.
Não há espaço para dançar, apenas para se levar pelo forte sentimento de comunidade, de sociedade. Somos apertados no vuco-vuco que, para alguns, pode ser um imenso pesadelo, afinal, nos sentimos vulneráveis, presos ao corpo de desconhecidos, embriagados, a mercê de situações que podem fugir de nosso controle.
Para outros, porém, essa experiência pode ser a essência do que significa estar numa festa carnavalesca, que nos obriga a uma intensa troca social, de conversas e risos superficiais, marcados pelo alto teor alcoólico, pela embriaguez de uma situação louca, desconexa, sem sentido, sem razão de ser.
Estar numa multidão carnavalesca sem a possibilidade de se movimentar por conta própria é deixar-se seduzir pela beleza do caos, a força do imprevisível, a estética da desorganização.
Muitos percebem a poesia desse contexto e se permitem ser devorados por esse frenesi sem sentido, mas que tem um sentido em si mesmo, quando nos obriga a viver a coletividade, a nos desfazer de nossas máscaras, nossos perfumes, nossa estética.
Nos colocamos numa situação em que temos o risco de perder nosso dinheiro, celular, a dignidade, a compostura, e principalmente, o juízo. Estar no carnaval mais puro e genuíno é entregar-se a esse balé de sensações, contradições e loucuras e gostar disso.
É como se a única saída fosse desligar o pensamento, qualquer ideia de racionalidade mais concreta, e permitir-se fluir até quando finalmente a multidão deixar que suas pernas voltem a ter vontade própria.
O álcool potencializa essa anestesia de sentidos e reações e nos coloca no fluxo dessa correnteza maluca, despudorada, descentralizada, sem classe social, como um verdadeiro ato sexual em que nossas máscaras egocêntricas vão por água abaixo e reina nosso instinto, nossos sentimentos mais animalescos, mas profundos.
Uma experiência de frisson, anarquia social e mental.
Estamos frágeis e expostos a tudo e a todos, expostos mais absurdo caos.
Carnavalizei com toda força, alegria e espírito. Que venham novos carnavais!