Uma forte emoção me invadiu assim que pisei meus pés no Brasil depois de um longo hiato de quase seis anos morando na Europa. Foram 6 anos entre idas e vindas, da Irlanda para Portugal, e uma pandemia no meio que arrasou o mundo inteiro com incertezas.
O mundo foi sacudido e eu me escondi desse tsunami no coração de Portugal, na Serra da Estrela, de onde saí para Lisboa em busca de melhores caminhos e oportunidades.
Em Lisboa, o tempo passou até conseguir ter um pouco mais de firmeza e finalmente pude comprar a passagem (caríssima) para viver o Brasil na sua melhor época: o Carnaval.
Não poderia ter escolhido melhor momento para chegar à terrinha. O calor do Brasil ainda mais ardente e uma onda de ansiedade a tomar conta do meu coração e, com certeza, do coração de milhões de outros foliões com fome e sede de multidões, de esfrega-esfrega, e claro, cachaça, suor e cerveja.
Foi nesse Brasil que eu queria mergulhar com toda sua profundidade e imprevisibilidade, um Brasil de festa, especialmente após 4 anos arrastados por uma presidência autoritária, neofascista e ultraconservadora.
Após a posse de Lula, o Brasil ainda foi sacudido atos de cunho terrorista. Com os ânimos finalmente mais calmos, pude me concentrar na minha chegada a esse país com tantas contradições, um país-continente, de dimensões extraordinárias, unido pelo seu idioma carregado de milhões de sotaques, cores e influências religiosas.
Estava morrendo de saudades e a minha maior expectativa era encontrar o calor muito mais do que geográfico: era de um calor humano saboroso que eu buscava, longe da eterna busca por um espaço pessoal próprio típico da maioria dos europeus.
O frio já me incomodava e eu estava com pouca vontade de viver o vuco-vuco de Lisboa. Eu estava carente da energia invasiva e expansiva dos brasileiros, da terrinha, com sua arquitetura clareada pelo calor escaldante de seus céus.
Eu queria saber como estava o Brasil.
E eu tinha um pouco de medo da minha reação, minha adaptação, de como eu entraria em contato com essa força da natureza que habita a América do Sul com um gigantismo cercado de diferenças sociais, econômicas e culturais.
Eu queria ver o Brasil.
A chegada não poderia ter sido mais triunfal, com o abraço caloroso e explosivo do meu núcleo familiar, composto por minhas duas tias e mãe. Mas eu precisava me preparar para esse momento.
Um amigo me deu um sábio conselho: “Fausto… filma”. Foi dito e feito. Fiz amizade com outra passageira, original do Rio Grande do Sul, mas apaixonada pelo Recife, e pedi que segurasse a câmera para captar esse momento eufórico, apoteótico.
Ela não apenas seguiu minha sugestão como me ajudou com a bagagem repleta de licores e bebidas que eu trouxe de Lisboa em abundância para a terrinha. O abraço parou o Aeroporto do Recife, com muitas lágrimas reprimidas depois de longos anos que se arrastaram ao longo de meses, semanas e dias.
A volta pra casa foi aquele momento de sentir o calor abafado do Nordeste, um calor que entrou em contato com minha pele e reacendeu lembranças, sentimentos.
Estava com saudades das minhas raízes, saber que mesmo imerso em culturas cosmopolitas, plurais, eu ainda tinha meus pés no mundo que me fez ser o que sou hoje.
Organizei minha vida para poder celebrar essa viagem com tudo que tinha direito: Carnaval, calor e muita, muita praia. Estava com saudades das águas quentes do Nordeste, do jeito todo meigo, afetivo de se dirigir e se relacionar com as pessoas.
Passei alguns dias em Vicência, a 100 quilômetros do Recife, também conhecida como a “Princesa do Siriji”, o rio que cruza a cidade, rodeada pela Serra de Jundiá, local onde está o histórico Engenho de Jundiá, e outros ricos patrimônios culturais que trazem vestígios dos tempos áureos da economia açucareira, que movia toda a região da Zona da Mata nordestina.
A economia do açúcar transformou completamente a paisagem original dessa região, que tinha o nome de “Zona da Mata” por causa da abundante Mata Atlântica que povoava suas paisagens.
O Nordeste brasileiro é geograficamente definido pelas regiões e seu clima, um fator essencial para sua economia: no Recife e Região Metropolitana temos o litoral, a faixa costeira e as cidades que cresceram ao redor da capital; a seguir, a Zona da Mata, que se apoiou fortemente no cultivo da cana-de-açúcar, suas usinas, mais modernas, e os engenhos, mais tradicionais (como aponta o historiador mundialmente cultuado Gilberto Freyre e seu Casa Grande e Senzala, obra que estuda as relações sociais, econômicas e culturais dessa parte do Brasil e que revela o quanto esse Brasil ainda subsiste, nas relações trabalhistas e demais injustiças sociais); a paisagem é tomada pelo Agreste, com sua geografia rochosa, acidentada, já mais seca: e por fim o Sertão e sua aridez exótica, revelado ao mundo pelos olhares de escritores como Euclides da Cunha, com a obra Os Sertões, e Bernardo Guimarães.
Eu cresci na Zona da Mata e vivi em Vicência durante minha infância e adolescência.
Foi o momento de me reconectar com as pessoas, ver que a cidade se desenvolveu economicamente, embora ainda careça de uma estrutura turística capaz de atrair visitantes. A cidade tem um potencial bastante significativo para se destacar no Estado, com a presença dos Engenhos Poço Comprido, Iguape, Água Doce (que também é uma Cachaçaria) e da Capela São Joaquim, e como a maioria das cidades interioranas, Vicência funciona ao redor de sua Igreja Matriz: a Paróquia de Sant’Ana, e seu comércio.
A origem de Vicência é apontada pela existência de Sá Vicência Barbosa de Melo, uma senhora que hospedava os viajantes que se aventuravam pela região do Siriji. Aos poucos, esses andarilhos passaram a permanecer e o comércio começou a crescer. Vicência cresceu por causa da existência de uma mulher, um fato bastante louvável.
Minha infância dos anos 90 foi como a infância de qualquer criança, com muito videogame, televisão, revistas e livros (especialmente os finos, hahaha). Com poucas opções públicas de lazer, meu divertimento era correr pelas ruas, mas também cresci com uma imaginação muito fértil e produtiva.
Passava horas a escrever de tudo, desde letras de músicas, romances, histórias em quadrinhos, contos, pensamentos, poesias, até sagas de games inteiras e tinha meu próprio canal de televisão (com certeza seria YouTuber se então existisse internet).
A falta de opções de lazer é um grande problema das pequenas cidades, especialmente para os jovens. Para mim, o final de semana era quase uma tortura e pra fugir do silêncio monótono do mundo eu mergulhava em filmes, livros e televisão.
A restrição de divertimento, por outro lado, foi decisiva pra justamente desenvolver meu gosto pelas artes escritas, meu refúgio da monotonia do mundo. O entretenimento dos livros muitas vezes era bem mais divertido do que o do mundo audiovisual. E como minha cabeça fervilhava, eu também criava tudo para extravasar minha voz artística.
Com horas dedicadas ao mundo imaginativo e imaginário (sou piscianooo), eu cheguei ao Ensino Médio com um certo destaque na arte de escrever. Tudo resultado de puro esforço para desenvolver essa arte. Hoje vejo a beleza desses Nãos na minha formação. Posso não ter tido MTV (lá não pegava o famoso canal musical), mas me dediquei a um ofício que me levou a conhecer o Brasil e o mundo.
Andar pelo mundo com a marca interiorana é um grande orgulho pra mim. Cresci com valores mais simples sobre a vida. No interior, as pessoas se olham nos olhos e o fato de um tomar conta da vida do outro, algo abominável em metrópoles e grandes cidades e sociedade individualistas, também tem seu lado belo.
Somos menos egoístas, mais preocupados com o bem-estar do próximo, há uma sensação de pertencimento a uma comunidade, em que vizinhos fazem parte um da vida do outro.
Vejam só, as grandes cidades hoje buscam reproduzir esse estilo de vida, seja através da formação de grupos, seja pelos condomínios (embora nestes últimos impere a lei do individualismo extremo).
A sensação de solidão, no interior, praticamente inexiste, seja pelo hábito de fofocar, seja pelo contato tão próximo, facilmente desenvolvido, em que a conexão flui muito rápido. Com menos opções de lazer, as pessoas são também levadas a buscar menos coisas para preencher suas horas.
Uma simples conversa na calçada, uma missa, um culto, ficar em casa simplesmente. A vida em outro ritmo traz menos possibilidades e com menos possibilidades, o pouco que resta vira muito. O resultado são menos ansiedades, menos buscas. É outro estilo de vida, o qual não julgo, e acredito que se encaixa de forma bastante saudável para muita gente (e cada vez mais).
Nos meus últimos dias de Brasil, tive o prazer de reviver a emoção de lançar um livro físico, impresso.
Há mais de 15 anos, eu lançava minha primeira obra de literatura, Palavras que o vento não carrega, com mensagens de um adolescente ingênuo a respeito do mundo e principalmente de seus conhecidos e familiares.
Recebi o convite da Escola Dr. Joaquim Correia, o conhecido CERu, escola onde minha mãe e tias já trabalharam, para lançar meu novo livro, Contos Mágicos de Dublin. Se no primeiro livro a plateia foi composta de personalidades da cidade, dessa vez foram estudantes dos últimos anos do Colegial.
E para me dirigir a esse público e falar de literatura de uma forma prazerosa, tudo o que eu fiz foi não falar de literatura. Ao menos, não do modo convencional.
Falei sobre minhas experiências de vida, o quão vicenciano eu sou, igual a eles, e como ler pode ser uma atividade tão prazerosa e divertida quanto as redes sociais, filmes, séries e todo esse mundo de conteúdo existente por aí.
O resultado foi quase 1h30 de conversa com adolescentes como se eu fosse também um. Claro que nem todos tinham interesse em ler literatura ou mesmo de escrever, mas pude atiçar a curiosidade deles para ao menos abrir um livro, sem ser um chatonildo.
Foi interessante uma jovem que se aproximou de mim e tinha uma forte tendência à escrita criativa. Ela disse que escrevia muitos poemas e estava empenhada no seu romance. O mais curioso foi ver que ela também sofria do mesmo problema que eu sofri quando adolescente e até mesmo no início da fase adulta: a acne.
Ela já tinha marcas profundas de acne e com certeza o hábito introspectivo de escrever e ler parecia ser um refúgio agradável e aconchegante para aquela cabecinha sensível e imaginativa. Espero de coração que ela continue no seu processo de se tornar escritora e que não se deixe abater pela frustração de não ter uma pele perfeita. Que use a dor dessa vivência para criar coisas lindas e tenha paciência porque as espinhas vão passar, e vão deixar um legado de dor bem interessante para o seu eu artístico.
Foi uma experiência de aprendizado maravilhosa.
Tive vontade de escrever para esse público (que é o público do meu primeiro livro digital e provavelmente de outras obras que virão nos próximos meses). Uma pitada de stand up comedy ajudou a fazer esse bolo crescer.
Vir para a cidade da minha infância após quase 6 anos foi uma experiência de transformação interior profunda. Percebi o quanto meu crescimento pessoal e minha personalidade mais pacata foi ligada à vivência de uma cidade com poucos recursos. Não cresci em corredores de shopping centers, em que adolescentes são pressionados a consumir e atender demandas irreais de existência.
Mas cresci com o valor de que a vida em comunidade precisa ser preservada para a manutenção do nosso sentido de humanidade, de que todos somos um. Sim, o interior pode ser doloroso, no sentido de restringir as opções de atividades que preencham nossos dias, mas o que seria de nós sem as nossas dores, as nossas vivências mais pesadas?
Existe dor em ser muito leve? Milan Kundera fala disso em A Insustentável Leveza do Ser.
Talvez sim. Talvez seja impossível não sentir dor, e a inexistência dessa dor gera a própria dor do vazio, do não perceber novas nuances da vida. Não que eu esteja romantizando o sofrimento. Nada disso.
O que penso é que a vida é um rolo compressor que nos leva de X a Y. E essa caminhada implica em uma dose de desconforto, para uns mais, outros menos. Mas tudo nos leva ao próximo passo.
E o próximo passo não poderia ser outro, uma das maiores paixões da minha vida: o Carnaval.
Até lá!