Construir personagens é construir um novo Eu

“Mergulhar no processo criativo da construção de um personagem é mergulhar pra dentro”.

“A arte transforma”.

Essas frases podem soar um tanto cliché, mas o aprendizado que o contato artístico proporciona é de fato emocionalmente revolucionário. De tantas formas de se fazer arte que existem, as artes cênicas, performativas, são uma das que mais me fascinam.

Você sabe o que é deixar de ser você mesmo e dar vida a outra pessoa? É mágico, é misterioso, é infinitamente indescritível. Quando um pintor pinta um quadro, um escultor faz uma escultura, um cantor interpreta uma canção, um artesão faz uma objeto artístico, eles ainda podem ser chamados deles próprios.

Quando um ator faz outra pessoa, o papel dele é deixar de ser ele mesmo, e ao mesmo tempo não, porque cada ator, por mais que ele seja um camaleão, ele carrega a si mesmo, ainda que no corpo de outra pessoa. O personagem é uma mistura de um ator, vivo, gente como a gente, com um ser ficcional. Tanto que dizem que os atores são verdadeiros médiuns do mundo espiritual, que incorporam outras vidas que não existem aos olhos e precisam de corpos físicos para se materializarem.

O porquê de isto acontecer? Ora, a vida por si só não basta. Você precisa de algo mais para se sentir vivo. Precisa ir à igreja/centro/comunidade espiritual para saber que sua existência vai além do seu trabalho e sua família; precisa ouvir música para sentir coisas que a melodia cotidiana silencia.

A melodia da vida é silenciosa, porque depois de um tempo já não mais a ouvimos. Os sons e buzinas se aquietam e se incorporam aos nossos ouvidos, viram uma coisa apenas. Viramos coisa, coisificamos, uma espécie de “royaltie”. O som do mundo vira puro silêncio e o silêncio, quando não é procurado, não diz nada, apenas é o vazio da palavra.

Quando a palavra silenciada é aquilo que procuramos, ela diz alguma coisa. Assim é a vida em contato ou não com a arte.

A arte faz da vida um espetáculo maior do que ela é, dá cor a ela, dá significado ao momento, torna tudo mais belo, é a manifestação da estética, a busca pelo belo nas coisas. A arte de atuar é buscar o belo no outro e corporificar a sociedade em um personagem que funciona numa história ou que traz uma história dentro de si.

Somente quem é ator/escritor, seja profissional ou não, sabe de toda essa “viagem”. Nós viajamos para outros lugares porque o nosso próprio lugar não basta. Precisamos de outros lugares, de outras searas, de outras coisas.

Precisamos de outros, precisamos do outro. O outro nos dá sentido, nos dá percepção do quanto somos e não somos. O outro nos faz piscar os olhos, porque se estamos o tempo todo de olhos abertos, nossos olhos se secam. Precisamos fechar os olhos para que eles possam continuar abertos.

Precisamos dormir para poder continuar vivos, precisamos morrer todos os dias para continuarmos vivos, embora os sonhos são prova viva de que não morremos, ainda que nosso corpo e nossa consciência morra (talvez). A consciência de fato nunca morre, mas se ressignifica.

É de um assombro, uma energia espiritual o ato de interpretar que ultrapassa os significados de tudo!

É deixar o hoje e ir para outro hoje, ser isso para ser outro isso, ser cá para ser outro cá.

Lembro de Geni, a travesti que interpretei em Morder-te o Coração. Meu Deus, que mulher incrível! Como foi surreal mergulhar nas dores dessa mulher que transita nos gêneros, mas se faz e perfaz como e enquanto mulher, que salvou o mundo, salvou a humanidade, oferecendo seu próprio corpo ao sexo com um alienígena. Foi estuprada por um extraterrestre e assim salvou a humanidade que tanto a condenara, por simplesmente ser o que é, uma mulher nascida no “corpo de um homem”.

E logo no dia seguinte ao fatídico ato sexual compulsório e doloroso (“e numa noite lancinante, entregou-se a tal amante como alguém entrega-se ao carrasco…”), ela volta a ser xingada pela humanidade, com o famoso refrão que até hoje se escuta nos cantos do Brasil (“Joga pedra na Geni!”). No corpo de Geni, eu aprendi a ser homem, aprendi a ser um homem melhor.

Com Jorginho, em As Solteiras, mergulhei no processo de composição de um homem de perfil conservador, pouco afeito às discussões de um mundo que mudou e de que ele não se apercebeu. Ou não quis perceber, esse pode ser um melhor argumento. Mas aqui eu não posso condená-lo. Fi-lo, no início, com um julgamento, uma forte carga de crítica para esse homem bastante diferente de mim.

E isso comprometeu minha compreensão do sentimento desse personagem. Afinal, ele não é totalmente responsável por ser assim. Ele tem uma história de vida diferente da minha para ser assim, para levá-lo a ser assim. A vida o esculpiu, a vida o moldou. E assim, quando eu deixei de julgar Jorginho e passei a compreendê-lo, a ver com carinho sua história de vida e a exercer, de fato, na prática, o poder da empatia, eu consegui entender as palavras do monólogo a que eu daria vida.

Claro que uma boa conversa com a super diretora Pitty Webo me ajudou horrores a destrinchar a força do conflito que adentra na alma desse homem. Foi aí que eu percebi que Jorginho, um conservador, pensa, sente e faz numa, digamos, inocência pueril (aos meus olhos), que caberia a mim conservar, ou, ainda, acender, pois era esse o discurso que ele trazia dentro dele.

Um personagem nonsense merece o mesmo respeito que um personagem realista. O primeiro pensa estar correto acerca de tudo e o segundo transita na dúvida. O primeiro não é melhor ou pior que o outro, são duas linguagens de expressão cênica, são dois elementos de um estilo de storytelling distinto.

Na peça As Solteiras o humor é nonsense, o humor é desconectado da realidade, de uma abordagem mais realista do comportamento das pessoas. Podemos ir um pouco além do tom, quase numa esquete, para que o absurdo do personagem venha à tona.

Em A Good Man is Dead, Dorian, meu querido garçom aspirante a cantor, o nonsense também impera. Dorian pouco tem noção do que é “ser adulto” mesmo. Há no personagem um senso de responsabilidade que chegou muito tarde à sua vida. Ele quer ser pai do filho de Simone, mesmo sem ter certeza de que ele é o pai. Daí vem o grande mistério, se a Simone (com sobrenome Capitu, uma homenagem ao célebre “Machadão”) teve filho dele ou de Winston, o famoso fotógrafo.

Essa dúvida provoca uma mistura dentro do coração do Dorian. Por um lado, ele quer fama e reconhecimento através do reality show, que pode ser a oportunidade para sair da vida de garçom e ir para o mundo artístico que ele sempre sonhou.

Por outro, a possibilidade de ser pai é um chamado à responsabilidade, à construção de uma família, que ele não tem, ou de que ele fugiu, já que seus pais moram longe e ele se habituou a viver fora da presença familiar.

Dorian, enquanto profissional artístico, está longe de conseguir excelência: falta-lhe disciplina para estudar a arte do canto, da música, e assim conseguir o grau de maturidade artística para alçar voos para mais longe, com mais força e solidez.

Ele, ainda, sofre de uma contradição: ao mesmo tempo em que é puro carisma e tem uma altíssima autoconfiança, essa segurança lhe falha ao não ter prioridades e ao não dar os passos necessários para se profissionalizar de vez, enquanto músico atuante no meio.

O humor nonsense do personagem surge quando ele canta desafinado seus próprios versos; tenta, sem muito poder de charme e sedução, convencer Simone a voltar para ele; e ainda pensa que o reality será a oportunidade para conseguir esses dois pontos na sua vida: a fama/prestígio profissional e a família/relacionamento conjugal.

Ainda tenho dúvidas se, de fato, ele está mesmo interessado em Simone. Anja Schilles (a Simone) disse que não, o que eu achei uma possibilidade bastante interessante, pois deixaria o personagem com um certo ar vilanesco, ou mesmo poderia torná-lo, de fato, um vilão na história.

Por outro lado, gosto de ver a humanidade e bondade no coração dele, como eu havia pensado desde o início, quando elaborei o Dorian como um personagem de fundo Valdeville, que desbanca para o caricato, para a sátira, a comédia, a farsa, atrapalhado, desengonçado, um Chaves, um Mister Bean, de humor físico bastante significante.

E acho que essa bondade é bastante saborosa no personagem. Claro que a dúvida ainda é igualmente interessante. A ambiguidade é sempre charmosa e causa interesse, mistério. Deixar em cima do muro pode ser interessante também, pois a força do personagem é, acima de tudo, a comédia, e não o drama, vertente para a qual ele pode cair se essa dubiedade for muito a fundo.

Além disso, a pegada de A Good Man is Dead é de nonsense mesmo. É mostrar que esses personagens vivem realidades próprias e paralelas. É pra parecer pouco realista, de propósito. E é assim que acontece numa esquete de humor, o riso vem justamente desse exagero, que destaca, reforça um traço de comportamento nosso que é amplificado no personagem daquela história ou historieta.

A Good Man… é pra ser nonsense, um pouco acima do tom, já que estamos também produzindo uma série a ser veiculada na internet e a catarse deve, precisa ser rápida e nada como o exagero como uma ferramenta capaz de captar a atenção de quem está rolando o dedo pelas telas das redes sociais.

O processo de pensar um personagem me encanta por essa capacidade de provocar a intelectualização do autor, do contador de histórias, do escritor, do criador e cocriador. Sem sombra de dúvidas, atuar é um ato fantasmagórico e espiritual.

Sempre precisaremos de um mundo espiritual que dê contorno ao mundo “real” e “material”, porque a matéria em si só não é suficiente para dar forma ao mundo por inteiro. A matéria de que é feita a vida é feita de camadas de realidade que se sobrepõem umas às outras e dão cor à realidade, ainda que nossos olhos e ouvidos estejam silenciados pela melodia da realidade.

É para isso que a arte existe: para dar som aos silêncios que anestesiam a vida cotidiana. Mergulhar no silêncio sem querê-lo é nadar no vazio.

Se você quer trevas e silêncio, faça-o querendo, desejando-o, sendo-o.

E é nesse momento que o silêncio vira música, a escuridão ganha cores e a sua alma ganha vida.

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