Estudantes de cinema da UBI captam a magia e o mistério do festejo em inédito programa de residência artística.
Uma aldeia de 17 habitantes, todos eles com mais de sessenta anos. Um país católico, de perfil pontualmente conservador, religioso. Uma festa que coloca no centro do palco o mais temido dos personagens das histórias bíblicas: o diabo.
É nesse cenário pouco provável que acontece há décadas a Festa da Cabra e do Canhoto, uma das mais tradicionais brincadeiras populares do interior de Portugal, na minúscula, mas não menos emblemática, Aldeia de Cidões, no município de Bragança. É pra lá que fomos nós, um grupo de sete destemidos estudantes do Mestrado em Cinema, da Universidade da Beira Interior, participar de um inédito programa de Residência Artística.
As residências artísticas são uma espécie de programa de incubação que financia e suporta o trabalho do artista durante um período específico. O artista recebe apoio para desenvolver sua obra sem tantas pressões financeiras, imerso em um ambiente que estimula sua criatividade. O nosso grupo foi o primeiro a participar da iniciativa, uma parceria entre a UBI e o setor governamental de Bragança.
OS PROJETOS
Foram divididas duas equipes que, antes mesmo de embarcar nessa aventura, já teriam de apresentar um projeto de curta cinematográfico a ser gravado durante sete dias. O curta teria que estar relacionado à Festa da Cabra e do Canhoto e os integrantes teriam a liberdade de desenvolver suas ideias de acordo com sua criatividade.
O trabalho precisaria, de algum modo, abordar essa festividade, que multiplica o número de pessoas na aldeia de Cidões. Criamos e apresentamos nossos projetos e recebemos a estrutura necessária para a produção das imagens durante os sete dias de estadia em uma mais do que confortável hospedaria pertinho do vilarejo. Recebemos equipamentos e o deslocamento para os locais de captação das imagens.
Também participamos de um workshop cinematográfico com o realizador português Pedro Neves, que apresentou seus filmes e deu feedback sobre as nossas ideias, algo essencial para o amadurecimento dos projetos. E como todo projeto que envolve criatividade, as ideias iniciais passaram por alterações, tanto na forma quanto no conceito. O resultado foi um natural processo de recriação, de reinvenção, de olhar novamente para um mesmo ponto e perceber novos detalhes.
Um dos grupos focou seu trabalho em retratar a figura do Cabrão, do maligno, e como isso mexe com o imaginário das pessoas que vivem nessa região. O outro grupo dirigiu seu olhar na observação da paisagem durante essa época do ano, em ritmo de transição das estações.
A FESTA
As paisagens de Cidões são um convite à parte para o deleite e a contemplação. Chegamos por lá durante o final do outono e início do inverno, período comemorado pela religião Celta e mundialmente conhecido como Halloween, ou todos os santos. A Festa da Cabra e do Canhoto, no final das contas, é uma comemoração que marca essa passagem.
A comunidade se reúne, claro, pra comer muita cabra, e outras delícias da região, como castanhas assadas (abundantes durante essa época), feijoada (à moda “Transmontana”, ou seja, atrás dos montes, um tipo de feijoada diferente da brasileira, que usa feijão mulatinho ou de corda, carne de porco e repolho), além de diversos tipos de linguiça, como as de chouriço e alheiro. Além da comilança, não poderia faltar beberrança, com muita sangria, finos (os chopes) e um bom vinho.
A surpresa da festa, para nós, visitantes, é a aguardada “queima do Cabrão”, uma representação do diabo com uns 5 metros de altura (com um pênis gigante, que faz a festa dos fotógrafos e curiosos), arrastada em um carrinho pelas ruas da vila e acompanhada por artistas, que executam números com fogo.
No percurso do grande “cabrão”, uma trilha sonora é executada, com o som do bichano sendo morto, a urrar de dor (é de arrepiar). O cabrão é levado para uma fogueira gigante, bem próxima ao centro do pátio da festa (as chamas, embora altas, incrivelmente não alcançam os fios dos postes – eu fiquei preocupado que elas queimassem tudo, enquanto todo mundo não estava nem aí, kkkk).
No meio da festa, artistas e público se juntam para dançar e brincar ao som de tradicionais músicas celtas, algumas mescladas com rock/pop. O clima é medieval e os moradores se caracterizam. É uma experiência muito rica e diferente, principalmente pra mim, que vim do Brasil e esse tipo de comemoração, com temática celta, não é comum.
A EXPERIÊNCIA
Um ponto interessante que eu observei foi a quebra de paradigmas desse festejo: enquanto no Brasil, especialmente em cidades interioranas e outras de forte tradição católica, as festas populares geralmente são marcadas por uma procissão em devoção de uma santa ou santo, e a fé religiosa é ressaltada, na Festa da Cabra e do Canhoto é o oposto.
As manifestações são em torno da figura do diabo, demônio, capeta, cabrão. Não que as pessoas expressem adoração, até porque o final da festa é teatralizado com o maldito vencido pelo bem, mas toda a encenação fala dessa figura, que inclusive alimenta o clima de mistério e misticismo.
Sem sombra de dúvida, foi uma experiência muito enriquecedora. Convivemos intensamente, durante sete dias, 24 horas, numa paisagem marcada pelo charme do outono e a mudança na coloração das folhas. Respiramos (e transpiramos) produção cinematográfica, com todos os seus prazeres e ossos.
Saímos com um pouco das cinzas queimadas na fogueira da Montanha Mágica de Cidões, onde o Cabrão morreu, metralhado por flashes de celulares, olhares que misturavam espanto e arrepio, e ao som dos seus próprios gritos.
Os moradores de Cidões, finalmente, estariam livres das suas influências trevosas. Porém, ainda havia um cheirinho de enxofre no ar.