crônicas de domingo: olhar pra dentro

Posted by:

|

On:

|

Olhar pra dentro, pro íntimo. Calar os gritos do mundo, as urgências vida afora, as guerras bélicas e políticas, as desigualdades sociais, os descaminhos dos perdidos, o que é moda e já não é mais.

Calar as forças além dos muros de sua pele, dos muros de sua casa, de sua aldeia, de seu continente político, geográfico, humano e filosófico. Calar o tempo e o contratempo, o passar das horas e o que vem a seguir, o que vem pela frente, o boleto de amanhã e o que falta no armário e na geladeira.

Calar a gordurinha na cintura, o resultado do raio x, do exame de sangue, de urina, de próstata, de mama, a ressonância magnética que trará uma notícia amanhã.

Calar o noticiário, calar os outros, calar aquela pessoa que disse uma coisa que você não gostou.

Calar a vozinha que te acompanha na cabeça desde a hora em que você acorda até a hora em que deita. Calar o spotify, a radiola, o meme, o que o político falou sobre o que não devia falar.

Olhar pra dentro é treinar o silêncio e aceitar o que vem por aí. Seus demônios e anjos, forças e fraquezas, alegrias e tristezas, o lado mais brilhante e inteligente, o braço musculoso e o quebrado, estúpido, ignorante.

Aceitar que vai vir um idiota e um sábio, ao mesmo tempo, e que um pode ser menor que o outro, que o outro pode ser maior que o um, e que os dois precisam um do outro, mas é altamente provável que você ficará muito mais incomodado com o que o idiota vai falar.

Olhar pra dentro é deixar de lado o ego que te defende. O ego que veste suas melhores roupas, usa cremes hidratantes, fala bem em público e sabe dar conselhos como ninguém. O ego que vai à academia de ginástica, à missa, ao culto, ao rolé da balada.

O ego que tem sempre as unhas muito bem-feitas e afiadas pra arranhar quem quer seja o louco que queira desafiá-lo. Dizer adeus pra esse belo escudo é doloroso. Alguns fazem mais rápido do que os outros, mas pra chegar lá dentro é preciso, cedo ou tarde, fazê-lo.

Pra encontrar a mais dolorosa, enervante fraqueza que te atrapalha na vida, que te faz perder a hora, que te faz adiar todas as coisas do mundo… precisa ser-se frágil. Pra ser forte, precisa desligar sua heroína e ouvir a gargalhada da vilã.

Precisa dar voz a quem, ou ao que, te sucumbe, te puxa pro erro, pra quebra, a rachadura, as varizes.

Não tem jeito, o olho míope não vê sem ajuda. O pé quebrado não fica reto sem o peso do gesso, o coronavírus tem o tempo dele e a você, rele mortal, não tem outra saída a não ser se isolar do mundo e deixar essa vaga vagar até voar pra longe.

A mais profunda fraqueza comunga com o vigor da fortaleza.

Olhar pra dentro, olhar pro eixo, olhar pro centro da rosa dos ventos, antes de segurar o leme e rumar norte, sul, leste, oeste, noroeste, sudoeste.

Conhecer-se a si mesmo. Conhecer os morcegos, vampiros e pestinhas que coabitam o seu ser que, pobre mimado, pensava ser um ser de apenas luz, a soltar beijos de luz (muita luz). Luz que cega, desnorteia, obstrui, afasta.

Ser sombra em comunhão com o ser-luz, essa conexão quase sexual entre o ter e o não ter, o ser e o não ser, ganhar e perder. Tudo vira um eterno perceber.

Olhar pra dentro, pro silêncio que o mundo grita pra calar, mas que, nessa hora, esse silêncio precisa falar, ele tem uma mensagem, uma história, uma lição, um caminho, um passo, uma direção, uma certa certeza, um pouco incerta, uma memória quase desmemoriada, uma letra no caderno quase apagada, um filme que parou no meio, uma mensagem quase esquecida.

E no meio dessas quase-coisas, segue você e sua coisa, entre seus próprios prédios erguidos e alguns destroços, pontes concluídas, outras largadas ao meio, outras apenas a começar, barcos a navegar, outros a se afogar, histórias com início, meio e fim, outras, início e meio, passos de dança incompletos, alguns pratos de comida bem saborosos, outros ainda com pouco tempero.

Você e você, olhando um pro outro, e você nem sabia que tinha umas marquinhas na testa, uns cabelinhos brancos ali no meio, uma covinha no canto da boca. Você e você, frente a frente, e você nem sabia que era tão teimoso, e nem sabia que era burro numas coisas, que sente inveja de algumas pessoas, que aquela raivinha láaaaa no fundo ainda está lá e você pensava que havia superado. Só que não.

E você briga pra que aquela outra pessoa seja diferente, seja mais interessante, mais bonita, descolada, mas não, não, não adianta, você não consegue acompanhar os memes, nem sabe qual o meme que está em alta e se pega saudosista ao ver um clipe musical da sua infância.

E você que achava que era tão progressista, se viu conservador, sentado numa cadeira alta de juiz, julgando todo mundo que passava pela sua frente, como aquela velha carola de quem você riu na novela por ser exatamente assim.

Você é essa velha carola sem papos na língua pra soltar o verbo pro defeito do outro.

Quem diria… quem diria.. que bonito, hein?

Que papelão esse o seu, a quem foi dito na infância pela sua tia que era a coisa mais linda do mundo, um anjo, uma coisa santa e maravilhosa.

Tá bem, você até que é fofinho, mas nem tanto… vê lá, não exagera na fofurice, que fofo mesmo só o amaciante do ursinho.

Achava que olhar pra dentro era uma viagem a Hogwarts, Nárnia? Achava que teria um Alvo Dumbledore ou um Mestre dos Magos pra lhe receber de braços abertos e dizer o que você tinha que fazer, com carinho e sabedoria?

Olhar pra dentro é olhar pra essa floresta de vidas que habitam no navio íntimo, um monte de serezinhos que se amam e se odeiam, corujas e pirilampos, sacis e fadas.

Bem-vindo ao baile do seu coração. A noite vai chegar: prepare-se, que a festa vai ter todo o tipo de música, principalmente as que você não gosta, mas você será obrigado a dançar o tempo todo, até o final, sem parar, até sem saber dançar.

Entre seus anjos e demônios, gaivotas e morcegos, bruxas e fadas, apenas dance.

Posted by

in