Dia 5
Acordei e parti em busca do anunciado e desejado café da manhã. Desci as escadas, friozinho leve. Tudo estava fechado. O restaurante onde supostamente eu teria o desajuno completamente às escuras. O bar onde eu comi um lanche na noite anterior, idem. A dona me garantiu que haveria café da manhã às 8h.
Procurei outros hóspedes. Um grupo instalado em outro quarto e uma moça confirmaram tudo. Teria que comer na rua.
Deixei um recado, fofinho, na cama, para quem quer que fosse limpar o quarto. Engraçado que, hoje, ao lembrar de tudo, lembro como havia sido o tratamento da mulher que me recebeu ali. Não havia sido muito afável. Ela era seca, ríspida. Eu tentava puxar alguma conversa, mas o fluxo não seguia. O cansaço não te deixa muitas opções para avaliar o comportamento das pessoas. E olhe que eu ainda havia recusado ficar em outro hostel por suspeitar do dono.
Entre erros e acertos, segue o barco, o caminho não pode parar. E eu não posso parar no caminho.
O café da manhã foi então numa esplanada/praça. O grupo de peregrinos fez o mesmo. Era um grupo de gente jovem, pareciam todos espanhóis. Não encontrei nenhum brasileiro nessa aventura – algo raríssimo, já que é possível encontrar conterrâneos em qualquer lugar do mundo e com muita frequência.
A caminhada foi de certo agradável e bem variada, com muitas subidas e descidas, trechos urbanos e florestais. Não me lembro de algum incidente ou, neste exato momento, não me vem à tona alguma inspiração absorvida ou decorrida desse trecho da caminhada. Foi um dia tranquilo, sem muitos sobressaltos.
O fluxo da vida tem seus tons fortes e pastéis, que ora se destacam, ora se escondem, ora se acalmam, ora se sobressaltam. Os dias calmos também nos mostram o valor dos dias sobressaltados. A gente sempre pede paz e calma, mas é a força do movimento, o rush das andanças e vivências que dão sabor a tudo.
O que seria da nossa vida sem problemas?
Sem desafios? Sem conflitos? Sem discórdias? Sem uma força contrária a nós? E quando a ausência disso tudo se torna um problema? E quando a ausência do desafio gera o tédio? Talvez o tédio nem seja o pior de tudo. Talvez seja a falta de percepção do próprio tédio. Talvez seja quando sequer percebemos que estamos entediados.
Quando a melodia da vida é apenas uma, nem mesmo percebemos as notas altas e baixas da música. As curvas da estrada é que a tornam uma estrada. Acho que é isso. Ou talvez não. É o que sei até agora, nessa página. Depois, tudo pode mudar. Mas pra alguma coisa mudar, ela precisa ter ficado naquele lugar por um tempo.
Os dias calmos são as coisas em seus lugares, antes que os dias sobressaltados venham para mudar tudo de posição.
Ao chegar em Padrón, sem muitas dificuldades, encontrei um hostel bem confortável e, assim como os outros, vazio. Naquele dia, eu tinha sido o único a aparecer por ali àquela hora. Mais tarde, outros, poucos, peregrinos, surgiram.
Deu uma pontada de dorzinha no coração estar ali naquela experiência e ver os famosos albergues fechados, as estradas quase vazias. Um certo medo a pairar no ar. Em alguns momentos, parecia como se eu estivesse num filme de ficção científica pós-apocalíptico. A catástrofe já havia eclodido e deixado um rastro de silêncio e vazio.
2020: um ano de recomeço para toda a humanidade.
Um ano confuso, de muitos pontos e vírgulas, curvas e incertezas. Estamos mais ansiosos e ainda nos recuperando de um trauma coletivo. Mortes sem funerais. Presos nas próprias casas, fugindo de um monstro invisível. Surreal e mais parece que não é verdade.
Roteiristas e escritores sempre levam uma rasteira dos absurdos da própria vida real.
Dia 6
O dia anterior, de fato, tinha sido calmo.
Mas as ondas voltam. Elas não param.
A saída do hostel em Padrón me levou para uma feirinha em uma praça. Eu cresci na rua da feira, com o som de vendedores chamando pessoas para comprar suas mercadorias, alto-falantes berrando o preço de uma cuequinha, uma calcinha por um real; sandálias de plástico a um real (que se desmanchavam quando as usamos).
A feira em Vicência é aos sábados e o barulho dela, que eu não gostava quando criança, hoje vejo como um barulho de vida, um barulho muito vivo. Ainda mais naquela situação, ainda em pandemia, ver aquela gente aglomerada mesclava medo e alegria.
A vacina, até o momento em que escrevo estas memórias, ainda não saiu (2020). Há surtos em algumas regiões, enquanto outras estão sob controle. Ali, meio que errantes, os feirantes tentavam voltar a viver, depois de um período de vácuo e silêncio.
Depois da feirinha, me deparei com um belo cemitério. É ali o fim?
Eis a pergunta que move a ciência e a religião e na qual a arte se debruça, pinta e borda enlouquecidamente. A maior matéria-prima das produções artísticas gira em torno da morte, da angústia de um fim ou de uma continuidade. A morte suscita medo e excitação no homem.
A caminho do meu objetivo, voltei a encontrar um grupo de turistas que havia conhecido no dia anterior. Crianças, muitas crianças. Já fui logo chamando todos eles de amigos: um bom latino-americano espaçoso e carente de interações sociais.
Até ali, estava tudo a correr bem e o sol só veio depois das onze. Deu uma boa trégua para os pobres peregrinos. Cada vez vi mais gente, ao contrário do dia anterior, com somente eu e o mundo. Cheguei a seguir pelo caminho errado, e depois reencontrei meu eixo. Eu, que sempre fui uma bússola quebrada, estava ali, em um labirinto. Sempre tive péssima orientação espacial. Facilmente me perco em caminhos novos.
Hoje sei que isso muito se deve à minha atenção facilmente dispersa, mas também muito acomodada e relaxada, que entrega aos outros a responsabilidade de fazer as coisas. Venho trabalhando isso e essas aventuras ajudam a nos perceber melhor, a exercitar o autocrítico, sem descer a lenha em si mesmo (embora às vezes seja bom descer a lenha).
Parece que é preciso um pouco de dor pra te fazer mudar. Estamos todos no mesmo barco.
AS COISAS PODEM DAR ERRADO.
Depois da metade do caminho, comecei a me sentir mal. Parei. Achei que era só o cansaço. Dei um tempo. Faltavam aproximadamente duas horas pra chegar a Santiago e uma constatação embaraçosa: definitivamente, eu não estava bem.
Sentia enjoo. Parei outra vez. Bebi água, respirei fundo. Quando voltava a andar, a sensação diminuía. Mas não passava. Tentei de tudo e aquilo só crescia.
No meio da caminhada, encontrei uma peregrina da Alemanha e com ela fui conversando bem. Falamos um do outro, dos motivos de fazer aquilo, principalmente. Ela era jovem, tinha pouco mais de trinta, e me disse que tinha um bom emprego, era muito bem paga, mas tinha uma jornada, antes da pandemia, de 12, 14 horas de trabalho por dia. Quando a pandemia aconteceu, ela sentiu-se grata. Pediu demissão, acabou um relacionamento e tomou coragem para fazer o caminho de Santiago.
Disse que nunca havia parado. Nunca havia dado um tempo pra ela mesma. Corria, corria, sem parar. Corria para dar conta de tudo e sem pensar nela própria. Daí eu contei um pouco de mim, dos meus motivos de fazer o caminho, da minha mudança do Brasil.
A conversa estava ótima, nos damos muito bem.
Mas eu ainda estava mal.
Pedi para que parássemos. Eu tentei disfarçar ao máximo para não estragar o momento dela. Em um certo momento, percebemos que já não havia mais placas indicando para onde seguir.
Eu, mal, apenas a segui, já que ela estava usando o GPS. Ela tentava puxar conversa. Eu tentava respirar, já com medo de que fosse Covid. Tudo é Covid, o nosso imaginário já não dava mais espaço para outras doenças.
Quando ela pediu para que parássemos num banheiro, fiquei grato e surpreso. Fui à casa de banho e vomitei tudo que havia comido até aquele momento. Senti-me ótimo e já tasquei uma banana da bolsa. Voltamos ao caminho, ainda sem setas. Pouco tempo depois, eu já estava me sentindo mal de novo e ela, a pobre, querendo conversar comigo, ser agradável, e eu me esforçando pra não acabar com a festa dela.
Foi quando, finalmente, vimos, (ou melhor ela viu, pois eu estava amarelo, com os nervos à flor da pele) a catedral de Santiago. Ali estava o destino de milhões, nesta jornada milenar pela rota do apóstolo Tiago. Uma rota, para alguns, religiosa, para outros, turística.
Quando chegamos à fachada, ainda em reforma, a pobre da alemã estava em êxtase. E eu, a ponto de desmaiar. Segurei a onda. Gravei um vídeo (que está no relato), fingindo que estava bem e feliz. Tiramos fotos, claro. Não dá pra transmitir na foto o tamanho da minha náusea. Acho que ela percebeu que eu não estava bem e procurou me mandar, via whatsapp, o endereço do hostel mais barato e perto de onde estávamos. Foi muito gentil, me ajudou nesse sentido.
Ainda ficamos sentados por um tempo. Ela, curtindo o sabor da própria vitória; eu, assombrado, na minha cabeça só pensava ser corona. Fiz um pouco de sala e alegremente/ansiosamente me despedi minutos depois.
Hoje, quando repenso e revejo a presença dessa peregrina no fim de minha jornada, acho que ela apareceu, na verdade, para me ajudar. Não apenas pela companhia. Eu estava tão mal que não conseguiria localizar a hospedagem naquele estado. Ela me enviou, me guiou até a catedral, e sempre com um sorriso e muito boa disposição.
Não demonstrou medo em nenhum momento, pelo contrário. O fantasma do Covid não havia escurecido seu olhar. É como disse Martin Sheen, ator do filme “The Way”, que narra a jornada de um pai pelos caminhos de São Tiago após perder o filho neles: “é possível fazer o caminho sozinho, mas lá você percebe que precisa dos outros”.
Andei por algumas ruas. Sentei, em pura agonia. Me levantei, não havia mais tempo. Cambaleei pela cidade em busca de uma ruela qualquer. Tudo era gente. Havia turistas por todos os lados, gente em toda parte. Não dava pra me entregar ali. Andei mais, a ponto de botar tudo pra fora na cara de qualquer um que passasse na minha frente.
Foi quando, por fim, encontrei uma rua mais ou menos calma, sem ninguém por perto: uma transversal entre duas ruas mais agitadas. Nem precisei me encostar à parede: botei tudo pra fora. Saiu em segundos.
Só se escutava eu chamando pelo Raul em pleno sítio histórico.
Quando essa tortura passou, me sentei, procurando algum Dramin nas minhas coisas. Nada. Eu não carrego muitos remédios, raramente uso remédio. Fui em busca de uma farmácia e a atendente me repassou um remédio pra enjoo.
Eu perguntei: será que é Covid? Ela me disse pra aguardar e ver como eu reagiria. Tomei o comprimido e fui em busca do hostel, exatamente o que a minha amiga de caminho me indicou.
Antes mesmo de chegar lá, ou seja, poucos minutos depois de sair da farmácia, o mal estar voltou a me atormentar. Quando encontrei o albergue, eu já estava suando frio de novo. Ao entrar, eu já estava mais uma vez a ponto de cair no chão. Minha testa estava encharcada de suor.
O rapaz que me recebeu fez um ótimo serviço de atendimento, que eu estava odiando, porque estava louco pra ir no banheiro. Ele me dizia onde estava a senha do wifi, qual o meu quarto, a senha da porta, a senha da puta que o pariu…
Meu deus, eu vou morrer e não para de vir tanta senha! Não quero ser bem tratado, eu só quero a porra de um vaso sanitário, caralho! Não, eu não disse isso, mas do jeito que eu estava, acho que teria dito. Quando ele me deixou ir pro quarto, eu dei graças a deus, corri pra lá, larguei a bolsa, e procurei o banheiro. A coisa sempre pode melhorar: toalete ocupado. Desci as escadas em busca de outro. Estava vazio. Amém.
Cheguei lá, levantei o vaso, e chamei o Raul de novo. Foi tudo pra fora, o que tinha e o que não tinha. Quando aquela água rala acabou, eu continuei com o acesso de vômito, sem nada sair. Foi punk, hardcore punk. Quando acabei, vi meu rosto banhando de suor, os olhos fundos, a cara de doente, de pobre coitado. Eu disse: me fudi! Vou ter que ir ao médico! Que merda do caralho!
Tomei um banho, meio tonto. Quando saí do banheiro, o rapaz me perguntou: você está bem? A minha vontade era de dizer: claro, estou ótimo, é que eu tenho bulimia. Foi barra, viu?
Deitei. Tentei dormir, ainda era cedo, por volta das cinco da tarde. Quando acordei. Já me sentia melhor, mas um pouco fraco. Procurei na internet endereço de hospitais e de como eu poderia ser tratado. Teria que pagar um seguro-saúde. Teria que ligar para alguma operadora. Teria que fazer tanta coisa.
Respirei fundo. Ao menos, já não tinha mais enjoo. Voltei a tomar a medicação que a moça me receitou. Acho que tinha sido uma infecção intestinal. Andei um pouco pela cidade, tomei um sorvete e um suco de laranja. Já estava um pouco melhor. Fui dormir. A melhor coisa que eu fiz.
Quando acordei, voltei a andar, em busca de comida de verdade, mas ainda estava com medo de passar mal de novo. Comi algo leve e saudável… uma pizza. Depois, outra coisinha saudável: um sorvetão. Caminhei pela cidade turística, que fervia àquela hora da noite, por volta das 22 h.
Muita gente. Aglomerado até dizer chega. Gente usando máscara, gente sem usar. Nos interiores, porém, todos usando. Não comprei lembrancinha, nem nada. Nem cheguei a buscar a credencial do peregrino (um documento que serve como prova de que você fez ao menos 100 km do caminho a pé ou 200 km de bicicleta).
Eu tinha fotos e, mais, tinha lembranças, muitas, e pensamentos, como estes que relatei até agora. Tinha uma história pra contar, e que história… E tinha sobrevivido a tudo: ao cansaço, às dúvidas, ao sol, mas principalmente, a mim mesmo.
Ainda não sei o que foi o Caminho de Santiago. E nem sei se o fiz.
Acho que sim, acho que não. Uma experiência dessa é algo intangível, incalculável, individual. Só sei que sempre tive o sonho de fazer. Sei que quero fazer de novo.
Sei que todas as dores que vivi nele foram necessárias pra eu me conhecer melhor. Sei que me superei, venci a mim mesmo, meu pior inimigo. Sei que fui contra tudo e todos, um pouco louco. Sei que recebi ajuda. Sei que ele ainda não acabou, porque a vida é assim.
Então sei que o caminho de Santiago não existe: porque ele é a própria vida.
Sei que ele é um meio, mas não o começo, nem o fim. Estamos todo no meio, entre o não saber e o saber que está no fim. Não chegamos nunca a não saber mesmo de nada. O primeiro passo já é resultado de outro passo atrás.
E o último passo… Onde fica o último passo?
Estamos nesse eterno meio, que diz que não tem fim, nem começo, nem passado, nem futuro, e ainda que o passado e o futuro existam, eles estão dentro de uma única coisa que resta a todos, ricos e pobres, lúcidos e ignorantes:
o presente.
O que você faz com seu presente?
Buen Camino!
O Caminho de Santiago é uma postura na vida.