Acompanhe os percalços, os sonhos e ideias ao longo desta jornada e entenda o porquê de ele não existir.
Não me lembro bem quando veio a ideia de fazer o caminho de Santiago. Lembro de, quando criança, eu tentei ler O Diário de Um Mago, do Coelho, e, embora a leitura estivesse me embalando, me conduzindo, assim como um caminho nos conduz, houve um determinado momento que eu simplesmente parei de ler.
Eu estava no primeiro do Ensino Médio. Eu ainda era religioso. Ao ler em uma das páginas que “era preciso lidar com os demônios interiores”, simplesmente abandonei o livro. A palavra “demônio” ainda era um peso-pesado na minha cabeça.
Eu tinha convicções religiosas ainda latentes; um senso crítico pouco desenvolvido e o medo se alimentava ferozmente dessas fraquezas. O que me fazia ter medo daqueles demônios? Por que fugir dessas criaturas condenadas, perseguidas e perseguidoras?
Não sei bem, mas não foi simplesmente ao ler a obra que tive a motivação para ir atrás dessa jornada (quase) sem destino.
Depois de muitos anos, essa ideia simplesmente cresceu, alimentada por algo sem nome. Mal sabia eu que, mais tarde, essa indefinição, essa ausência de palavras, termos, limites pra contornar ideias e vivências voltaria com mais força. Me levaria além.
Me levaria para O Caminho de Santiago de Compostela, uma das mais longínquas rotas de peregrinação de que se tem conhecimento no mundo ocidental. Uma jornada cercada de misticismo e religiosidade e que todos os anos alimenta a fé e imaginação de milhões de pessoas.
Antes de chegar à Irlanda, eu já havia assistido ao filme O Caminho (The Way, Emilio Estevez, 2011), que narra a saga de um pai pela jornada de Compostela após perder seu filho exatamente lá. Uma caminhada na própria dor, nas pedras que trazem essas memórias.
O filme é excitante, cheio de altos e baixos, alguma dose de humor. Uma boa aventura para quem quer inspiração para desbravar essa caminhada. Consciente ou não, eu buscava referências sobre essa trilha que me chamava.
Ao chegar no país e, passado algum tempo lá, eu tomei uma decisão: fazer o caminho antes de voltar para o Brasil. Seria minha despedida de terras europeias para um novo mergulho nas minhas raízes, no meu passado, que voltaria a ser presente. Pois bem, muita coisa aconteceu e muita coisa me fez mudar.
Vim para Portugal, depois de dois anos na ilha verde-esmeralda. Aqui comecei um mestrado em Cinema: um sonho que só me apareceu possível quando estava nas terras irlandesas. Eu estava livre das pressões típicas da vida de classe média do Brasil (emprego estável e com “sucesso”, casa própria, aposentadoria… e lá se vai…).
Uma nova disposição me tocou. Eu percebi que poderia buscar sonhos impossíveis.
Era possível dar vazão a ideias e histórias antes impossíveis.
PANDEMIA: DIAS ESCUROS, NOITES CLARAS.
Ao longo de 2020, ninguém imaginava que o mundo fosse acabar. Ninguém esperava que haveria uma pandemia, ainda em processo. Um caos silencioso que nos separou uns dos outros, nos enclausurou em nossas casas e nos empurrou no caos de nossas incertezas.
Fomos abrigados e desabrigados ao mesmo tempo. De um lado, para quem teve condições, a saída foi buscar abrigo na própria solidão e manter-se a salvo desse monstro invisível, quieto, sorrateiro e sem pé nem cabeça.
Por outro lado, a solidão, ora solidão, ora solitude, nos obrigou a ir nesse verso e reverso de um mesmo contexto. Em momentos, nos vemos em busca da própria paz nos nossos refúgios; em outros, travamos uma guerra contra essa prisão compulsória que a nossa própria desumanidade nos levou. Estávamos e estamos a destruir a nossa casa. O planeta, cedo ou tarde, grita, mas isso é conversa para outro momento.
Pois bem, a pandemia, pra mim, assim como para tantos, fez rever as prioridades. Depois dos mais críticos meses de isolamento e distanciamento social; aulas presenciais do mestrado canceladas, trabalhos idem, e o espetáculo de teatro do qual fazia parte também, eu vi que a vida escorria entre meus dedos.
O tempo havia chegado. Revi meus planos. Quando cheguei da segunda e última apresentação da peça – uma viagem que estiquei um pouco mais, pela Espanha Galega – estive por um dia na cidade de Valença. Ali vi os símbolos do Caminho. Aquilo me tocou com força. Era um sinal, ou, ao menos, assim eu enxerguei.
Temos olhos pra olhar e pra ver.
Quando voltei para Covilhã – cidade serrana no interior de Portugal onde morei por quase um ano para cursar o mestrado – já com a ideia em mente de sair dali, eu tomei a decisão de fazer o caminho o quanto antes. O tempo andava e eu precisava andar também.
Tratei da minha mudança para Lisboa. Consegui uma casa para me mudar. Finalmente, após quase três anos, um quarto apenas meu, meu espaço, meu canto. Ainda não seria grande o suficiente, mas era meuzinho.
Resolvida essa pendência, arrumei minhas coisas, fiz o mínimo de planejamento, e parti para Porto, onde começaria minha jornada pelo Caminho Português de Santiago.
PORTO
A escolha por Porto se deu por duas razões. A primeira era financeira: eu estava sem um trabalho fixo. Não queria gastar além da conta. Uma semana, no máximo, já seria suficiente.
No ano passado eu havia feito O Caminho de Wicklow, uma jornada pelas montanhas da Irlanda. Fiz em 3 dias e meio. Desta vez, faria o dobro do tempo. Depois de me preparar para a jornada, com direito a bastão de caminhada e chapéu para o calor escaldante que me aguardava, parti.
Não faltaram obstáculos para lá chegar. Eu havia perdido minha carteira com o cartão do banco. Cancelei o cartão e dias depois me contactaram avisando de terem encontrado tudo. Já era tarde para conseguir o novo cartão a tempo.
Fui para Lisboa sem cartão e foi uma das mais chatas dores de cabeça que tive, pois não conseguia fazer compras online. Um lá e cá chato pra caralho. Esses e outros obstáculos, se eu fosse lê-los como impeditivos para o meu projeto, eu não teria ido.
Meu coração dizia pra ir, apesar de o resto das coisas dizerem que não, desista, fique em casa e vá logo procurar emprego, “porque você não sabe do dia de amanhã…”. Não sabia mesmo, e ainda não sei. Por isso, fiz. Deixei o amanhã ser amanhã, com sua velhice que assombra a nossa cabeça de modo catastrófico e irreal. O mundo já havia acabado. O negócio então era viver esse pós-apocalipse, tal qual no game Resident Evil.
Dia 1
A viagem para Porto foi uma viagem que não consegui dormir. Quatro ou cinco horas tentando relaxar a cabeça, em vão. Ao chegar lá, a primeira coisa que pensei foi de buscar informação. Parti para um albergue de peregrinos que eu mal sabia que seria o único que encontraria ao longo do caminho. Esse tipo de alojamento, em situações normais, é facilmente encontrado no Caminho de Santiago. Eles oferecem uma estadia simples e barata e para entrar é preciso chegar em um horário e pegar fila.
Naquele dia, o albergue estava praticamente vazio. Fui recebido por dois simpáticos senhores, a quem me recuso de tratá-los como senhores. Era uma mulher e um homem com uma barba longa, que lhe transmitia a aparência de um sábio. O que eu senti com eles foi uma jovialidade absurda.
Sim, eles eram jovens, muito jovens, apesar de a idade, esse monstro horroroso que atormenta os sonhos de tanta gente, querer dizer o contrário. A senhora era muito risonha. Eu falava as coisas, em inglês, ela soltava uma risada gostosa, espontânea. O senhor (e eu vou parar de chamá-lo de senhor) tinha um visual descolado que lhe conferia muito charme, com sua barba longa e uma aparência desapegada.
Os dois me passaram algumas informações sobre o caminho. Eram quase duas da tarde. Eu queria pegar o primeiro transporte para Ponte de Lima, onde começaria, de fato, a peregrinar. Não havia tempo mais. O ônibus para lá era no início da noite, por volta das 19h.
Seria muito tarde para uma caminhada longa, de quase vinte quilômetros. O rapaz, esse é o melhor substantivo para nomeá-lo, me recomendou dormir em Ponte de Lima e começar no dia seguinte. Eu acatei todas as recomendações e pouco tempo depois já estava voltando para a estação.
Porto tem um forte significado pra mim. Foi em Porto onde eu comecei minha caminhada em Portugal, onde fui recebido pelos amigos Tiago e Monize para dar o pontapé em terras lusitanas após minha jornada deliciosamente conturbada na Irlanda. Uma jornada com altos, baixos e planícies, que me virou pelo avesso.
Voltar para Porto era voltar a essa nova página, para essa porta que eu atravessaria rumo a uma nova dimensão no mundo das artes – um mundo que definitivamente me fisgou e no qual habito 24 horas por dia, uma verdadeira pele, a pele que habito.
No caminho para Ponte de Lima, já quando estava me aproximando, meu estômago começou a revirar. Ao descer do busão, quase coloco tudo pra fora. Meu deus, que tortura. Comecei a respirar fundo e aos poucos, a coisa foi passando. Pois bem, lá vou eu em busca da minha primeira hospedagem, após ter bukado alguns minutos antes, e ter recebido a confirmação.
Surpresa? O hostel estava fechado. Liguei, procurei ajuda. Não havia realmente ninguém lá. Sorte a minha que a reserva não havia sido paga.
Havia um bar ao lado do hostel com alguns rapazes com quem fui conversar, em busca de ajuda. Todos portugueses, me falaram sobre suas andanças pelo Brasil. Gostavam do país.
Um deles, o mais velho, me falou sua impressão sobre o Recife. Disse que havia passado por várias cidades brasileiras e o Recife foi onde se sentiu mais inseguro. Eu disse que era uma pena, mas entendia sua posição.
De fato, a experiência de cada pessoa é relativa, ainda mais num país como o Brasil, onde a desigualdade grita, os equipamentos turísticos nem sempre estão preparados e os fatores sociais pesam muito para que alguém, especialmente vindo da Europa, possa se sentir tranquilo.
O Brasil é lindo, mas é um continente. Entendê-lo não é fácil. É mais fácil apenas estar nele e experimentá-lo. Tem gente que vai amar, outros não. Tem gente que vai gostar de umas coisas e outras não. Esse é o Brasil, desigual e contrastante.
Pois bem, um dos rapazes me levou ao centro turístico de Ponte de Lima para que eu buscasse um quarto para dormir. Ele me fez as recomendações, disse para eu conversar com não sei quem num dos bares e dissesse seu nome.
Lá fui e disse o nome dele e o nome de não sei quem. Ninguém sabia de nada, de não sei de quem e de mais ninguém. Ok, ok. No worries!
Fui em busca de acomodação e vi o que seria uma constante ao longo de meus dias como peregrino. As hospedarias coletivas, de baixo custo, ainda estavam fechadas. Sequer havia previsão de voltarem a abrir. Fazer o caminho seria um pouco mais caro, pois dependeria de albergues. No entanto, estes não foram muito mais caros.
Na maioria deles, eu paguei 15 euros no máximo pela dormida, e eram bem equipados e limpos. Também seguiam as normas de segurança… bem, não era tãaaaao rigorosos quanto a isso.
Sim, a gente usa máscara pra entrar e pra falar, tem álcool em gel em todos os cantos, e os hóspedes dormem em camas bem separadas. Mas não é essa coisa toda de segurança a ponto de uma paranoia quase “virginiana” (não entendo muito de astrologia, mas quem é ligado sabe do estereótipo dos virginianos).
Nesse primeiro dia, eu consegui ver um quarto individual para dormir. O preço era caro, por um luxo desnecessário: era um verdadeiro apartamento, todo equipado, 35 euros. Se fosse em outro momento da minha vida, eu diria sim imediatamente. Talvez eu ficaria desesperado, com medo. Talvez eu agiria de súbito. Eu agradeci.
Procurei um hotel. Hotel mesmo. Entrei lá e o quarto mais barato era mais de 60 euros. Eu voltei a perguntar: “mas será que não teria um quarto mais barato?” Sabe como é né? Dar uma de besta, com um sorriso na cara, simpatia e charme. A atendente disse que não, mas demonstrou muito boa vontade e pesquisou na internet por outros, até que viu uma pousada da juventude.
Quando liguei pra eles, o preço era um pouco mais barato: 32 euros e havia café da manhã. O problema era a hora do café: 8h30. Eu queria sair mais cedo, mas pensei que valeria a pena economizar mais um pouco com essa comidinha.
Ao chegar na hospedagem, que eu subi para meu quarto e de dentro tirei algumas comidinhas que eu havia trazido do Porto, uma delas era uma caixa de suco que eu jurava que era de pêssego.
Não era pêssego, era manga. Aff. Não sou fã de suco de manga, mas vamos lá, é o que tem. Eu havia comprado uns noodles, esses macarrões instantâneos que vêm em copos, mas não tinha garfo pra comê-los. Então? Que tal comer macarrão com a escova de dente?
Vamos para o dia 2?
Dia 2
O dia 2 não foi tecnicamente o dia 2. Na prática, foi o dia 1, porque no dia anterior eu não havia começado oficialmente a caminhada. Meu planejamento era de iniciar na Ponte de Lima no dia anterior, mas os planos saíram pela culatra.
Enfim, a jornada passo a passo foi na manhã seguinte, mais exatamente por volta das 10h – um horário completamente não recomendado em função do clima.
O clima me pegou de jeito no Caminho, embora eu esperasse que fosse pior. O verão batendo seus recordes de calor, poucas nuvens, o sol com toda sua energia, talvez no auge de sua forma física. No entanto, e essa foi a máxima que mais me acompanhou ao longo da realização desse projeto, eu fui e fiz.
Eu me peguei pensando “mas isso é loucura, olha a pandemia, olha a grana, você está gastando suas economias, você não sabe o dia de amanhã…”. É justamente por não saber o dia de amanhã que eu fui e fiz, sem esperar pelo clima perfeito. Tem gente que faz o caminho durante o inverno, com vento, neve e chuva.
Tem gente que faz com grupo, outros sozinhos. O importante é fazer e essa é uma metáfora para a própria vida. Quantas vezes a gente se pega adiando projetos decisivos, colocando tudo pra amanhã, vivendo apenas um hoje amedrontado pelo futuro e sufocado de passado. Viver o hoje sem se desconectar do passado e do futuro. Os três tempos nos coabitam. Os três tempos fazem parte constantemente de nosso hoje.
O presente dentro do presente. O passado dentro do presente. O futuro dentro do presente. Eles transitam entre si, se dialogam, discutem, brigam, mas têm que coexistir, em paz ou em guerra. É desse relacionamento que surgem as percepções, as conexões, as ideias, as reflexões e os avanços. O passado que nos ensina, o presente que nos liga, o futuro que nos puxa, nos coordena. Não há outra maneira.
Viver só do passado traz uma nostalgia sem fim. Viver só do presente é manter-se na efemeridade das coisas, no ruído incessante da gota que pinga da torneira, da nossa monótona respiração.
Viver só do futuro é estar o tempo todo fora do seu tempo, do seu eixo, olhar demais para o horizonte e esquecer do caminho que está debaixo dos seus pés. Uma dose de cada, um pouco de cada tempo, em conjunto, em busca de uma harmonia, de um contorno que ajude a visão a ver, os olhos a ouvir, o tempo a contar.
E ali estava eu, nessa harmonia desarmônica dos três tempos, nessa música melodiosa e ruidosa de três eras que coabitam o humano filosoficamente.
Bastão na mão, a primeira foto, o primeiro close, pernas no mundo, o mundo que me levaria para Santiago de Compostela.
As primeiras horas de caminhada são sempre de uma certa euforia e estranhamento que te dão muita energia. A depender de sua situação anterior, a caminhada longínqua pode ser um verdadeiro alívio ou uma tortura. É um ritmo novo de vida, onde seu único objetivo é andar. Talvez por isso traga tanto alívio. Tudo que você tem em mente é andar, é olhar, é ver.
Às vezes você olha, noutras vê.
No olhar, há superfície. No ver, alguma profundidade. Pra cima e pra baixo, no fundo ou no raso, tal qual o movimento de uma onda, o eterno ir e vir do vento que empurra as águas pra cima e pra baixo, misteriosamente, sem que saibamos o porquê.
Mas ali está o vento, ali está o invisível, que faz as coisas serem o que serem, que dá movimento pra que as coisas caminhem ou parem, embora não estejam paradas, porque até mesmo as pedras estão lentamente se dissolvendo para dar origem a outras pedras, o vento carrega poeira para criar outras pedras, que juntas serão rochedos, que juntos serão montanhas, que um dia serão destruídas pelo movimento da terra, e se tornarão outra coisa. Tudo em movimento, em fluxo, ainda que não olhemos ou não vejamos.
Nesse início, um corredor estreito de mato, com um clima bastante tropical, me fez lembrar das florestas brasileiras. Ao longo de todo o caminho, as florestas aparecem e desaparecem. O hiking tem dessas coisas: mostrar o novo o tempo todo, ainda que de forma sutil.
A cada passo algo novo se mostra e se esconde, enquanto nossas pernas puderem caminhar e nossos olhos puderem ver, porque até nossos olhos se cansam e durante o Caminho eles me alertavam de que meu corpo estava cansado. Os olhos pesavam dentro da cabeça. Ou melhor, eles eram o último sinal de que meu corpo estava cansado, dando sinais de que era preciso parar.
Meu objetivo era chegar até Rubiães. A primeira peregrina que encontrei era de origem germânica e estava usando dois bastões para fazer o caminho. A avistei poucos metros depois de sair do estreito corredor cheio de mato e adentrar numa área por debaixo de uma ponte, uma estrutura gigantesca de concreto e com um charmoso e aventureiro aviso encostado em sua base indicando perigo à frente.
A peregrina caminhava tranquilinho. Um detalhe me chamou a atenção logo após algum tempinho de conversa: ela calçava tão e simplesmente, sandálias. Eu perguntei como ela tinha coragem de fazer um hiking daqueles, exaustivo, apenas usando sandalinhas. Ela me disse que havia ido para a Índia com elas e que não teve problemas.
Eu fiquei admirado: em todo lugar que você ler a respeito desse tipo de esporte, a primeira recomendação é usar um bom calçado, fechado, de preferência, botas, que aguentem o rojão de horas infinitas no passo a passo dessa maratona.
Acontece que pensamos que tudo tem que estar perfeito para que as coisas sejam o que são. Porque temos uma ideia de perfeito e o que está diferente dessa ideia é imperfeito. Ali, naquela mulher, sozinha, em plena pandemia, fazendo o Caminho de Santiago de sandálias, eu vi que a falta de recursos não é motivo para fazer o que precisa ser feito, para empreender o que precisa ser empreendido, para viver o que precisa ser vivido.
E com sua simplicidade, ela me mostrou que poderia fazer o caminho sem a proteção de grossas e caras botas especiais para essa prática. Depois de mais alguma conversa, eu a deixei, com seus passos lentos, despreocupados, que não tinham pressa em alcançar a próxima etapa. E foi quando eu me aproximei dela que eu percebi que estava rápido, que meus passos estavam bem adiantados. Engano meu.
Depois de mais algum tempo, avistei um casal, que eu acho que era um casal, a fazer o caminho por entre a floresta. Eles vinham atrás de mim e depois me ultrapassaram. Estavam rápidos e firmes. O ritmo de seus passos era bem decidido, ainda que conversassem sem parar. Tentei acompanhá-los, ter o mesmo ritmo que eles.
Daí eu vi que não precisava seguir o ritmo de ninguém, que essa caminhada era uma coisa minha, um projeto meu, e eu não teria que me ajustar ao processo de ninguém. O silêncio e conforto de estar apenas em mim. Aprender isso pode ser doloroso, ou incrível, mas acredito que o hiking sozinho te permite viver isso, praticar isso, ser isso.
Deixei-os, após.
O pior estava por vir. Um pior não tão pior assim. A poucos metros, começaria a caminhada pela subida da bruxa, como eles chamam um trecho bastante inclinado durante a rota Ponte de Lima – Rubiães. Uma verdadeira montanha de pedras me aguardava, com muitas inclinações. Tem uma expressão portuguesa que eu adoro: rasgadinho. Essa parte foi bem rasgadinha. Agradeci à vida pelas pernas pra subir, pelo corpo sem nada que me faltasse para seguir nessa aventura.
Lembrou-me, definitivamente, o jogo Tomb Raider, um jogo que me acompanha ao longo da vida. Lara Croft e sua solitude/solidão no meio de lugares exóticos, em busca de aventura, de relíquias, quando, na verdade, está em busca de si mesma, ainda que o jogo não leve a esse nível de abstração.
Durante a escalada, me deparei com uma floresta repleta de árvores altas e esparsas, em cujos troncos estavam pendurados sacos, de onde escorria uma espécie de líquido viscoso, que parecia ser uma cera. Havia um corte no tronco das árvores e dessa abertura descia essa massa esbranquiçada.
Dali estava sendo extraído algum material. A natureza sendo transformada para uso do homem. O que mais me fascinou era como esse tipo de procedimento poderia gerar aquele material sem que houvesse a derrubada das árvores.
Óbvio que em outros trechos da floresta havia, e muito, desmatamento. No entanto, ali havia uma maneira de se obter matéria-prima sem agredir em demasia o que a natureza havia deixado.
Derrubar árvores gera dor nas florestas e a dor das florestas será a dor do próprio homem, ainda que, a princípio, gere conforto em suas casas. Lições de poucas horas em convivência na profundeza do silêncio de uma natureza pouco tocada.
Quando alcancei o povoado de Rubiães ainda era cedo: por volta das 14h. Embora eu houvesse bookado um quarto, desmarquei: vi que tinha forças para ainda mais uma etapa no mesmo dia.
De acordo com meu planejamento, eu tinha que chegar a Santiago até o domingo, pois voltaria para Lisboa na segunda. Do ponto de onde parti, Ponte de Lima, para o fim da peregrinação, se eu fosse fazer uma etapa por dia, levaria 8 dias para alcançar meu objetivo.
Eu tinha cinco dias.
Era preciso aumentar o passo, o ritmo, ainda que isso me custasse descanso – e até mesmo minha saúde, como você verá nos próximos capítulos.
Almoço feito, liguei para minha mainha. Nada como um bom susto: eu avisei a ela que estava “só fazendo uma trilha”. Aí ela me respondeu: “de novo??? Vai andar por aí no meios dos matos, não! Um lugar distante, não conhece ninguém! Menino doido!”.
Eu disse a ela apenas no primeiro dia. No dia seguinte, disse o resto: avisei que “a trilha pela natureza” terminaria quase cinco dias depois e que eu precisava caminhar por “algumas horas”. Se quer fazer alguma coisa, não avise: informe.
Informe quando já estiver fazendo, porque aí já não vai ter mais jeito de você parar ou de alguém dizer alguma coisa que faça você parar – mas vê lá, não vai fazer besteira, calminha nessa cachola!
As horas de jornada após o almoço foram bem tranquilas e com paisagens lindas e muitas, muitas fotos. Depois de muito tempo, venci minha resistência em ouvir música. Já se passavam umas seis, sete horas de trote, e a mente começa a dar sinais de exaustão.
No entanto, eu ainda tinha que chegar a Porrinho.
Então, o jeito era enganar a cabeça, e nada melhor do que uma boa trilha sonora pra isso. A música tem o efeito de preencher algum vazio de nossa cabeça, de calar o excesso de palavras que podem poluir sua mente. Eu uso música para tudo, principalmente para escrever. Graças a deus existe música. Quem diria o lendário grupo ABBA e sua inesquecível “Thank You For The Music”.
Para quem deseja fazer o caminho, ou mesmo quem já o fez, sabe que o controle mental é mais do que essencial, tanto quanto o preparo físico.
A mente vai reclamar. Vai dizer que você está cansado, entediado. Vai te mandar desistir. Ok, tudo bem, você realmente quer descansar, quer parar. Mas você precisa continuar, precisa ir um pouco mais longe, precisa avançar. Aí que entra o momento da superação. É o momento em que é preciso um esforço extra, um uso de energia adicional para continuar seu processo.
É aí que, se você persiste, você encontra essa energia, que nem sabia que existia. E ela só aparece quando se tem uma meta para alcançar, que vai depreender um esforço adicional, um salto maior do que suas pernas podem fazer. É nesse pontinho sensível que os atletas ganham recordes. Quando eles enfrentam os próprios limites para fazer esses limites maiores do que si mesmos. Novos limites aparecem para o que antes era difícil.
Eu tinha que caminhar mais, bem mais até Porrinho. Passei por Valença, onde eu havia tomado a decisão de estar ali. Estava tão cansado que, infelizmente, não pude desfrutar mais uma vez, da bela paisagem turística dali. E é nesses momentos que você se questiona se está, de fato, “aproveitando” a viagem.
É quando você pensa se seu investimento, de tempo, disposição e dinheiro, estão valendo a pena. Se o prazer de estar ali não é mais o mesmo ou ainda se você, de fato, está sentindo prazer em fazer aquilo ali. Daí que eu aprendi mais uma lição: que nem sempre o prazer é o de se estar no presente, de sentir algo positivo no que se está fazendo.
O prazer pode ser o prazer da superação, do ir contra tudo e contra todos mantendo um foco, porque mais a frente existe uma meta a ser alcançada e para tal é preciso ter resistência e persistência. É uma forma diferente do puro e mais absoluto, e talvez superficial, prazer.
E foi esse um prazer que, hoje, ao relembrar de tudo, ao reescrever essas memórias, ao colocá-las num papel, ao dar letras a essas vivências, que eu posso compreender essas coisas dessa maneira, com esse olhar.
O prazer de superar como um prazer igualmente válido, ainda que desagradável, ácido, até mesmo amargo. Um prazer tão engrandecedor quanto o prazer agradável, doce, divertido.
Ao chegar em Porrinho, cidadezinha leve e até que bem movimentada, cheguei ao hostel que havia bookado e ligado antes para saber se estava mesmo funcionando.
Afinal, comi uma pizza e um sorvete – dois prazeres leves, agradáveis, de que a vida, também, precisa.
Vamos dormir?
Quando cheguei ao quarto, havia mais três peregrinos – uma moça e um rapaz espanhóis e uma moça germânica. Eles estavam fazendo o caminho pela segunda vez e haviam se conhecido nele na primeira vez que realizaram.
O colchão onde dormi fazia tanto barulho que era humanamente impossível não acordar. Desci do beliche duas vezes: uma para ir ao banheiro, outra, para abrir a janela, que uma das moças havia fechado para abafar o som da rua.
Àquela hora, a cidade ainda estava movimentada. Com poucos bares ou festas, as pessoas caminhavam pelas ruas agitadas, sem muitas opções de lazer. Para dormir cedo, por volta das 12h, foi punk rock.
Na segunda vez que desci do beliche, derrubei desastrosamente tudo. Tive a certeza de que tinha acordado todo mundo, porque os motores quebrados da roncaria geral pararam na mesma hora. Fui abrir a janela. Eu estava ansioso e me sentindo sufocado de calor. Não sou claustrofóbico, mas naquela hora foi como se algo me estivesse a apertar o pescoço.
Coloquei minha cabeça pra fora, respirei fundo, busquei o vento. Bebi água e voltei para a cama, um pouco mais relaxado, tranquilo. A subida para o beliche foi igualmente barulhenta pra cacete e o povo parou de roncar de novo. Pobres deles: eles haviam me dito que acordariam as 4h da manhã para ir ao mercado e comprar o desajuno antes de voltar para a trilha.
Eu até pensei em me juntar a eles, mas depois senti que a caminhada precisava ser feita sozinho. Eu queria realizar aquela peregrinação a só e não senti que ainda fazia parte daquele grupo. Se quisesse, teria feito, sem problemas, mas senti que ainda não era o momento.
De fato, eles acordaram ainda de noite. Eu acordei junto, mas voltei a dormir. Senti que precisava dormir mais, afinal, tinham sido mais de oito horas de puro esforço físico. A noite não havia sido fácil, mas eles tinham que seguir a estrada, tinham que seguir em frente. Eu segui mimindo.
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