Tudo começou com a convocatória para duas audições de teatro/dança contemporânea anunciadas na internet no final de 2020. Um desses testes pedia um número em vídeo que explorasse visualmente “Spring Rounds from Rite of Spring”, composição de Alice Coltrane, musicista de Jazz americana. O vídeo precisaria usar elementos do ambiente na sua construção. Eu não tinha tempo e não priorizei: os dias haviam passado e eu precisava realizar o número antes que os prazos morressem.
Na semana final de dezembro, após um lanche de aniversário de uma amiga, fomos dar uma volta em mais um dos parques de Lisboa e surgiu o impulso de fazer o número ali, tão e simplesmente. Dito e feito: buscamos um lugar tranquilo, entre as árvores, pedi que meus amigos me filmassem, e comecei a executar a performance de uma canção que eu havia ouvido poucas vezes. Não dediquei muitas horas a explorar a fundo a faixa, o que reconheço que não foi uma boa estratégia. Ainda assim, fui e fiz o número, me deixando conduzir pela força cinematográfica da canção, que começa na suavidade, passa por um meio mais incisivo, chega ao seu ápice intenso e finalmente se acalma e se acaba.
O vídeo, feito no celular da amiga aniversariante (já que o meu estava completamente destruído), ficou com as risadas dos meus amigos e o som de carros passando, além de ter alterações na qualidade das imagens, pois a câmera se esforça para compensar os altos e baixos da luz do dia. Para corrigir essas duas partes, cobri com a música e apliquei um filtro de escala de cinza (ou preto e branco). Ambos os efeitos foram muito úteis para dar uma qualidade mais estável à imagem e ao áudio.
Mandei o vídeo para as duas seleções e não fui escolhido em nenhuma. Reconheço: não estava totalmente preparado, foi bem improvisado e sem o rigor artístico, técnico e estético necessário para competir com outras produções mais elaboradas. Ainda assim, foi de uma ousadia e tanto a minha criar esta que foi minha segunda performance individual gravada. A primeira também irei expor aqui no blog o processo criativo (foi utilizada para o mestrado em Cinema, na disciplina de Cinema & Outras Artes).
De posse deste material, guardei-o no YouTube. Já de antemão, alguém me disse que pouca coisa poderia ser aproveitada dele. Fiquei chateado, mas depois de um tempo, compreendi que, apesar de ter um fundo de verdade, eu não queria deixar esse material esquecido apenas por “estar ruim” – estamos falando de arte, estamos falando de subjetividade, um jeito individual, pessoal de ver as coisas. E como já disse Clarice Lispector: “existe hora pra tudo e existe a hora do lixo”. De posse deste “lixo”, eu vi que ainda era a hora dele e me veio o insight de transformá-lo numa espécie de “romance visual”, uma obra de “cunho literário” (resguardadas as polêmicas que o termo “literário” possui), mas contada com movimentos e som, sem palavras escritas.
Pode (e deve) soar poético, mas eu percebi que ali era um “corpo que escrevia”: através de movimentos, eu estava narrando uma história, que precisava ser lida, mesmo com toda a carga de subjetividade que a leitura de movimentos naturalmente implica. Ler dança contemporânea é desafiar o nosso olhar e se permitir “não entender nada”, mas ainda assim, “gostar”, e esse gostar é o prazer que a arte provoca. Ler é mais do que ver um texto escrito: é entender um texto no sentido mais amplo, vasto da palavra. Eu percebi que a música de Alice Coltrane era uma história (assim como toda ou, ao menos, a maioria das músicas o é).
Animado com alguns resultados de vídeos anteriores com o TikTok, dividi o vídeo em seis partes e subi, ao longo de dias intercalados, os fragmentos de 1 minuto, com títulos específicos:
Capítulo 1: Flow E ring / FlorEscer
Capítulo 2: V olatile/Volátil
Capítulo 3: O n The Road / Na Estrada
Capítulo 4: L ove / Amor
Capítulo 5: V oraz
Capítulo 6: E volve / Evolua
Cada capítulo tem um ritmo, uma força e um estilo de edição especifico. Não fiz cortes significativos: há apenas a transição de um capítulo para o outro, sendo que a diferença está mais na linguagem visual. Usei e abusei dos efeitos do TikTok, de modo que eles ajudassem a conduzir o olhar do público sobre a obra e aumentassem sua expressividade emocional. Foi divertido e excitante experimentar os recursos audiovisuais da rede. Em termos de repercussão no TikTok, cada vídeo teve um alcance bastante distinto: em vários, tive mais de 1000 visualizações, enquanto em 1, apenas duas:
Capítulo 1: Flow E ring / FlorEscer – 2050 views
Capítulo 2: V olatile/Volátil – 2 views
Capítulo 3: O n The Road / Na Estrada – 1389
Capítulo 4: L ove / Amor – 1349
Capítulo 5: V oraz – 1493
Capítulo 6: E volve / Evolua – 107
Em 6 vídeos, consegui aumentar de forma orgânica meu número de seguidores em ambas as redes (TT e Instagram), embora nunca tenha sido esta minha meta. As pessoas estranharam o conteúdo: o público de redes sociais, ao menos o meu público, não está acostumado a consumir este tipo de informação. Os comentários foram escassos, o engajamento não foi expressivo.
Ainda assim, foi interessante mostrar esta minha faceta artística. Não estive preocupado com números, mas em movimentar as redes com um conteúdo que explorasse minha veia de dançarino/performer: atividades artísticas com as quais também me identifico e que venho buscando me profissionalizar (não no sentido de ganhar dinheiro com isso, ainda, mas de aprimorar a qualidade técnica e estética de cada criação).
Se não consegui meus objetivos profissionais enquanto ator, posso afirmar que foi uma experiência válida para meu amadurecimento artístico, intelectual e tecnológico. Artístico porque pude explorar uma forma de expressar minha subjetividade de modo diferente, mais criativo, ousado e autônomo; intelectual porque me levou a buscar uma maneira de racionalizar minha própria obra, minha produção de arte; e tecnológico porque me impulsionou a adentrar no universo barulhento, mas cheio de oportunidades, do TikTok, uma rede social francamente em expansão.
Para dançarinos, performers, artistas visuais, mergulhar neste espaço é ampliar sua conexão, ter maior alcance gratuito (orgânico) e se permitir dialogar com plateias mais jovens; é arriscar-se nesse público que, embora possa não ser a audiência mais convencional de seu fazer artístico, pode surpreender. Às vezes, um conteúdo que foge das expectativas de uma determinada rede social pode trazer resultados bastante positivos, mas é preciso ter paciência, abertura e uma dose generosa de flexibilidade para compreender a dinâmica de funcionamento desse espaço democrático.
O artista precisa se arriscar com frequência, se jogar no desconhecido, em busca de novos conhecidos, novas formas e expressões.
Eu evoluí bastante, mas ainda tenho muitos novos capítulos à frente nessa jornada pelos caminhos ondulados das artes.