O Milagre de Anne Sullivan é um clássico que fala de uma vida amordaçada pelas desventuras do próprio corpo e da ignorância e cegueira de uma sociedade incapaz de ir além das impressões.
Você não escuta, não fala, não vê. Mas anda, come, é gente igual a gente. No entanto, será que realmente ainda é tão “gente” assim? Como ser gente quando as referências que nos tornam “pessoas” estão inacessíveis em nós mesmos? O mundo do Eu, com as sensações mais necessárias para perceber a vida, está trancafiado atrás de olhos apagados, ouvidos bloqueados e uma voz que se calou por trás de dentes e línguas. A situação descrita, incômoda e claustrofóbica, foi vivida magistralmente por Patty Duke em 1962 durante o longa O Milagre de Anne Sullivan (The Miracle Worker). Dirigido por Arthur Penn (Bonnie e Clyde, 1967), o filme estadunidense deu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante do ano 1963 para a jovem intérprete, além da estatueta de Melhor Atriz para Anne Bancroft, que encarnou a professora Anne Sullivan.
Para quem busca um filme mais do que clássico, mas necessário e filosoficamente rico, a película é uma joia rara, recheada de interpretações deslumbrantes, intensas, seja das protagonistas, que brilham em sequências muito bem dirigidas, ou mesmo dos coadjuvantes, que presenteiam a plateia com a mesma riqueza de trabalho cênico. Em 2001, a obra recebeu um remake, produzido pela Disney. Mas o preto e branco da versão original, a trilha sonora da época, o esmero em trazer atuações convincentes, fazem da primeira adaptação uma verdadeira obra-prima.
Na película, baseada na comovente história real do livro The Story of my Life, escrito pela própria Hellen Keller, Anne Sullivan é contratada para cuidar de uma menina cega, surda e muda, mimada ao extremo pelos pais, que não sabem como lidar de forma madura com a condição física e psicológica da garota. Hellen é tratada como um animal, alimentando-se dos pratos das outras pessoas, sem fazer uso de talheres, ignorada na maior parte do tempo, e amarrada em seus rompantes de fúria. Agressiva, violenta, imprevisível, a sensação ao ver o estado da menina é a mesma de uma bomba-relógio no coração de alguém, prestes a explodir a qualquer momento. Seu entrave maior é a quase total incapacidade de se comunicar com o mundo, de interagir com as pessoas, de exteriorizar sua essência/existência. Seu mundo está interno, preso dentro da garganta, atrofiado socialmente.
A cena inicial já causa impacto: os pais de Hellen ficam horrorizados ao descobrirem que a criança não responde aos seus chamados. O preto e branco ajuda a criar um tom de thriller. Os gritos da atriz Inga Swenson, que vive a jovem mãe Kate Keller, provocam arrepios. Ela fica histérica ao ver a “aberração” silenciosa no berço, sem atender aos estalar de seus dedos. Uma “aberração” que cresce e continua sendo tratada como tal, sem rédeas. Na tentativa de “domesticar” a criatura, os pais contratam a experiente Anne Sullivan.
Juntas, elas protagonizam cenas inesquecíveis, como a longa sequência em que a educadora fica a sós com a criança, na sala de jantar, e a obriga a sentar-se à mesa para comer. Trava-se uma luta intensa e surreal entre as duas, com golpes impiedosos da menina contra a babá. O esforço físico para sua execução é notável, sendo perceptível o cansaço de ambas, face à obstinação que a encenação exige. Ao término da passagem, elas saem do recinto exaustas. A menina corre para os braços da mãe, apavorada, que pergunta a Anne: “O que aconteceu?”. Ao que é respondida: “Ela comeu no prato dela. Usou uma colher de sopa. E dobrou o seu guardanapo. A sala de jantar está um caos, mas o guardanapo dela está dobrado”.
O guardanapo dobrado representa o esforço inicial da personagem em desenvolver o senso civilizatório no comportamento da criança. A terapia segue então com o transcorrer da obra: para livrar a garota dos vícios gerados pela família, Anne pede aos pais para cuidar da menina sem interferência deles, em outra casa. Após alguma resistência à audaciosa ideia, eles consentem, e então o tratamento é continuado.
Na verdade, tratamento não é a palavra certa, afinal não estamos lidando com uma pessoa em estado de patologia propriamente dito. Hellen apenas é uma criança, acima de tudo, sem acesso ao mundo por meio dos caminhos usuais que permitem contato com a sociedade, ou seja, é alguém ainda não compreendido. A relação entre a criança e seus parentes pode ser traduzida como uma Aporia, termo explicado pelo Dicionário de Filosofia de Sérgio Biagi Gregório como “uma contradição insolúvel, ou uma dificuldade impossível, para o pensamento”.
Na história, os pais não conseguem se conectar de forma lúcida com a própria filha, e vice-versa. Dessa forma, a missão de Anne é justamente encontrar esses “poros”, tatear essas brechas que a permitam mergulhar no universo interior da criança e capacitá-la para dialogar com o mundo além de suas paredes misteriosas. Para isso, ela faz uso de técnicas pedagógicas no intuito de impulsionar habilidades úteis ao desenvolvimento da menina e para reintegrá-la ao convívio com sua família.
Com o amadurecimento da garota e, consequentemente, o desabrochar de sua capacidade comunicativa e de convivência social, sofridamente procurados por Anne Sullivan, ocorre o que podemos chamar de rompimento do efeito Impressionista. De longe, os quadros de autores como Claude Monet e Vincent Van Gogh parecem mostrar uma dada percepção da realidade, como uma paisagem. Quando próximas de nós, as imagens ficam desfocadas, transformam-se em pontos pequenos que, ao serem amontoados em torno de si, constroem um desenho, que no fundo é apenas uma miragem. Nada é o que é quando estamos acostumados a basear nossa visão de mundo apenas em impressões.
Imagine entrar nos sentimentos e aspirações da Hellen. Imagine ter um mundo preso dentro de si e ser visto como um animal indomável e sem direito a sonhos, a ter uma vida relegada ao bloqueio. Ir além da aparente brutalidade da garota para mostrar ao mundo o que a criança realmente é. É justamente esse o mérito de Anne. Sai a impressão. Fica a expressão.
Com um roteiro simples, mas muito bem realizado, O Milagre de Anne Sullivan é mais que um filme clássico: é necessário para entender a Comunicação como uma necessidade para existência do homem e o poder revolucionário da Educação na construção de vidas e na melhoria da sociedade, ajudando a igualar oportunidades entre pessoas, a despeito de suas limitações e diferenças. Entender essas diferenças é abrir-se para uma nova vida e, no final de tudo, serão elas que nos tornarão absurdamente iguais.